Criação da Salvação

Magnólia ia chegando na Carranca, parou sua moto vermelha debaixo da arvore à esquerda do bar. Desceu de sua moto passando a perna direita sobre está com a facilidade que cabe a uma mulher de um metro e setenta e quatro. Quando direciona a vista para a porta daquele estabelecimento, se surpreendeu. Achou que as nuvens da Serra de Martins, atraídas pelo maravilhoso cheiro exalado, vieram parar na cozinha de Luiz Pacato. O papo já passava de boca em boca. Ela entrou na cozinha e se deparou com Pacato, Jay e Dinamite.

Muitas vezes, as empresas evoluem ao ponto de fazerem parte da vida não apenas de seus colabores, mas também de alguns clientes. Era o caso de Magnólia e Dinamite. Magnólia era uma mulher nova, mas bem-sucedida. Abraçara tanto a ideia da Carranca, que arrumou tempo para administrar as redes sociais do bar sem ganhar nada em troca. Dinamite, baixinho de cabelos negros e escorridos, era funcionário da companhia de águas do Estado (o apelido diz muito sobre sua função). Nas horas vagas, ele sempre passava no bar para endossar a roda de conversa.

O papo já se mostrava alto, talvez até um pouco sem sentido. A cena encontrada por Magnólia, por esquecimento de termos mais apropriados, poderia ser definida como aleatória. Jay parecia um Mick Jagger pós seca fazendo show no meio de uma feira. Estava de óculos escuros, segurando um violão com apenas três de suas cordas. O garçom se encontrava entre Pacato e Dinamite, tentando, sem sucesso, tocar “I Can’t Get No”. No entanto, na verdade, servia de fundo musical do discurso que Pacato fazia para Dinamite, este ouvia a tudo sentado com cara de espelho. Luiz estava de pé, falando com a boca, com as mãos, com os pés, às vezes sem o chão, pois chegava a pular de tanta empolgação. O cozinheiro, que segundo ele mesmo havia sido reconhecido como ponte entre os mundos real e espiritual desde sua passagem no interior Acre em 1949, discursava sobre uma grande descoberta que havia feito, talvez até o segredo da vida. A descoberta durou pouco, tudo foi esquecido assim que virou seu tronco para olhar Magnólia, que já se apresentava em suas costas.

Com a chegada da Social Media da Carranca, fez-se necessário formar a roda novamente para bater um papo. Depois das atualizações das notícias municipais (fofoca é um termo muito pejorativo), Magnólia, que passara um tempo olhando para as telhas da cozinha, abaixa a cabeça à altura do diálogo. Com dificuldade, abre os olhos de soldadora e comenta sobre seu sonho na noite passada.

— Essa noite eu sonhei com a morte, qual bicho eu jogo? — Pergunta Magnólia.

— Eu tenho pra mim que quando sonha com morte, se joga gato ou borboleta — Responde Dinamite.

— Vou jogar borboleta! — afirma Magnólia seguindo com o argumento — Gato tem sete vidas, dá trabalho demais pra Morte.

Era de se estranhar o silêncio de Pacato, mas um homem com cachos suaves e um bigode varonil sabe muito bem entrar em qualquer assunto.

— Eu acho que a Morte gosta de gato. Ela esteve aqui semana passada. Comeu uma criação cozida e vez ou outra jogava um pedaço de carne pra esses gatos que zanzam por aqui. — Fala Luiz, deixando a voz mais grave para parecer sério.

Todos direcionam seus olhares para Luiz, e o primeiro a demonstrar revolta com uma história dessa antes mesmo das 10 horas da manhã é Jay.

— Tenha vergonha na sua cara. Dizer uma coisa dessa? Encontrar a morte e ainda escapar. Agora deu bom mesmo! — O caboco que ainda estava de óculos e segurando o violão, larga tudo na mesa e levanta para buscar água.

Dinamite era calmo e muito observador; no entanto, adorava bater esteira para boas histórias (nem sempre podemos chama-las de mentiras), e fala:

— É, e deve ser difícil matar borboleta com uma foiçada.

— Pacato, venha devagar que o santo é de barro. — Fala Magnólia, mostrando a palma da mão direita a Luiz. Conhecendo seu amigo e sabendo que este sempre se supera, exige argumentação:

— Agora me diga o que danado a morte veio fazer aqui.

— Ela veio atrás de mim! Chegou aqui perguntando por um tal de Luiz, que tinha um bar e era metido a poeta. — Responde Pacato.

— E como foi que você escapou, praga? — Jay pergunta com tom duvidoso enquanto fecha a porta da geladeira.

— Sossegue aí que vou lhe contar sobre esse encontro com a dona Morte! — Diz Pacato enquanto se levanta.

Pacato se posiciona para sua fala e parece ter despertado a curiosidade de todos. Com os seis olhos voltados para si, começa a narrar sobre sua conversa com a Morte:

— Depois de um dia muito longo, com muitas coisas, bastante cansativo, pedi para Jay guardar as mesas, porém, deixasse uma, pois ainda permaneceria no bar. Peguei uma garrafa no freezer. Sentei ao lado direito da porta, na frente da imagem da carranca. Enchi meu copo. Quando baixava a cabeça depois de tê-la inclinado para virar o copo de cerveja, abri os olhos e a vi se aproximar. Ainda não sabia quem era e nem de longe suspeitava que seria a mulher da última visita. Distante me pareceu ser baixa, mas quando estava perto vi que passava quase um palmo da minha cabeça. Seus cabelos brancos com alguns fios voltados para uma tonalidade mais azulada estavam amarrados com um rabo de cavalo. Um vestido elegante, branco, longo o suficiente para esconder seus saltos. Uma mulher como ela chamaria a atenção de todos e todas, mas percebi que apenas eu podia vê-la. Sim, e ela tinha uma fitinha vermelha com um bordado de ouro presa em seu vestido na altura do peito esquerdo.

— Dizem que foi um reconhecimento por levar o alemão do bigodinho para o inferno — Diz Dinamite.

— E era mesmo um bordado com detalhes russos — acrescenta Pacato em forma de agradecimento a Dinamite por tê-lo ajudado com os fatos da história. Continua sua narrativa:

— Ela chegou bem perto, desejou boa noite. Eu respondi e perguntei como poderia ajuda-la. Ela responde: “Estou procurando uma pessoa chamada Luiz, acho que é o dono desse bar. Carranca, né? Ele é poeta também. O senhor o conhece?” ¬— Fala Luiz tentando imitar a educação e elegância apresentadas pela senhora Morte. — Eu olhei pra ela meio desconfiado, um mulherão daquele atras de mim? Quando a esmola é boa o santo desconfia. Aí eu disse a ela: “Sou eu mesmo, Luiz Pacato. Puxe a cadeira, vamos sentando. Qual sua graça? O que a senhora deseja?” — Conta Luiz enquanto arrasta uma cadeira visando encenar para deixar a história mais real.

— Pronto, aí como ela se apresentou a você? — Questiona Magnólia.

— Ela sentou, olhou no fundo dos meus olhos e falou com a calma de quem havia visto muita coisa na vida (ou na morte): “Você já deve ter sentido que não sou um ser comum. Eu sou a Morte, Luiz. Eu vim lhe buscar” — Conta pacato com um tom sombrio.

— Dizem que é nessa hora que o homem se mela — Pontua Dinamite.

— Depois dessa você deve ter saído correndo, em? — Comenta Jay.

— Que nada! — contrapõe Pacato demonstrando bravura — Eu olhei pra ela e disse que ela não podia fazer isso. Me matar naquela hora? Durante o pôr do sol! Mandei foi ela voltar amanhã, passei o dia trabalhando e precisava tomar uma cerveja e relaxar, nem que fosse pra morrer ressacado.

— Eita danado! O bigode deu força pra o homem peitar até a morte — Diz Magnólia seguindo de uma risadinha.

— Escute! — Pacato pede atenção — Ela me disse que não era assim que funcionava. Não havia nada que eu poderia fazer. Mas eu insisti, disse que não ia dar certo morrer naquele momento. E morrer depois de uma trabalhada daquelas? Ela teria que me deixar viver! Mas a morte é cruel. Olhou pra mim e disse: “Estar preso ao que você lembra do passado e as suas previsões de futuro é realmente viver?” Tem histórias que mesmo com muitas virgulas, sempre tem a que causa uma pausa mais pesada.

— E aí, depois dessa o que foi que tu fizeste? — Questiona Magnólia com o tom provocativo que sempre utilizava com Pacato.

— Eu senti esse baque. — Confessa humildemente o pobre candidato a finado — Foi então que vi que precisaria utilizar outra estratégia. Teria que ser mais malandro que a Morte!

A história foi tomando um rumo aprumado. Bater o pé e não querer ir com a Morte até que dá para entender, mas ganhar daquela velha senhora na malandragem, seria pecado se não fosse impossível. Mas como o limite do ponto, quem coloca é aquele que conta, Pacato continua sua narrativa:

— Olhei para a senhora Morte e disse: “Pois aqui no meu bar até a morte que me leva deve ser bem recebida. A senhora deve ter tido um dia mais cansativo que o meu, deve ter matado muita gente. Pois vou pegar uma água e um prato de criação com arroz de leite pra senhora, que é pra não faltar força na hora de me foiçar.”

— Agora deu certo! A Morte comendo carne de carneiro. — Fala Magnólia surpreendida.

— Tem hora que alma demais enjoa! — Comenta Dinamite.

— Eu sei que vim aqui nesta cozinha, — detalha Pacato – preparei um prato com criação, jerimum, farofa, vinagrete, arroz de leite e batata doce. Coloquei o prato na mesa, de frente pra Morte. E foi rápido para o prato morrer. A pobre comeu até perder a elegância, comeu que desceu o suor sobre seu rosto. Depois pegou lencinho, limpou o canto da boca, olhou pra mim e disse: “O senhor cozinha muito bem. Nunca havia comido nada igual.”

— E aí? — Pergunta Dinamite que aguardava ansioso para descobrir como se escapa da Morte.

Pacato dá um pulinho para trás, abre os braços e dá um sorrisinho — E aí que eu ganhei o poder de barganha. — Luiz finalmente se senta na cadeira, inclina seu corpo para frente e explica como foi sua negociação com a Morte. — Vamos fazer assim, eu sei que a senhora sempre está aqui pela cidade e região, pois a senhora me deixa viver e em troca, sempre que a Morte andar por essas bandas, pode vim comer aqui que não paga nada.

— Como é, homem do céu, você ganhou da morte com um prato de criação? — Pergunta Magnólia colocando suas duas mãos na cintura.

— Tinha os acompanhamentos também! — Relembra Luiz — E o pior é que se um de vocês morrer, vou ter que abrir o bar, pois já tenho uma cliente garantida.