Entre Sem Bater - A Família

Marcus Aurelius disse:

"... reconheça a malícia, a astúcia e a hipocrisia que o poder produz, e a crueldade peculiar frequentemente demonstrada por pessoas de ´boas famílias`..." (1)

Ser imperador romano, com toda a certeza, não devia ser fácil. Se considerarmos as histórias sobre o maior de todos os impérios da humanidade, a complexidade aumenta. Mas, por outro lado, ser um imperador  que entrou no rol dos "Cinco Bons Imperadores" é surpreendente. Desse modo, uma frase e pensamento estoico de Marcus Aurelius tem um peso enorme.

A FAMÍLIA

Algumas palavras ou termos, a princípio, parecem fáceis para abrirmos um debate num texto como este. Entretanto, o contexto e a diferença de visões, pode tornar o debate ou troca de ideias uma balbúrdia. Por exemplo, resolvi escrever este texto à partir de uma pergunta simples num destes aplicativos digitais.

- Qual o papel da família?

Simples, né?

Nem tanto.

As respostas que se sucedem e os debates sobre uma definição de família, que parece simples, transformam-se até em polêmicas quentes. Desse modo, verificamos que, especialmente nas redes sociais, as pessoas não querem demonstrar infidelidade(2). Querem, a todo custo, mostrar que a sua opinião, mesmo de segunda mão, é a "verdade".

Nossa sociedade, especialmente a ocidental, sofreu uma espécie de lobotomia em relação ao conceito de família e afins. Atualmente, presencio discussões além da conta, por dogmas e crenças que não permitem às pessoas sequer pensarem no assunto.

É o fim, perdemos, como diria o filósofo, mas a frase de Marcus Aurelius, enfatizando a "boa família" é necessária para cutucar os incautos. Pior que tem gente que acredita piamente que a "família Doriana"(3) existe.

BOA FAMÍLIA

A adjetivação "boa", assim como outros tantos adjetivos, para referir-se a pessoas, carrega uma subjetividade inesgotável. Assim sendo, se retirarmos o adjetivo do imperador romano da frase, temos a uma boa ideia do que qualquer família pode se transformar.

O assunto é tão amplo que desde os pré-socráticos, muitos pensamentos(*) sobre família deveriam nos remeter a sérias reflexões. A seguir separamos algumas, que poderiam, certamente, ser 100 ou 1000.

"Das pessoas que conheço, metade a família salvou, a outra metade precisa se salvar da própria família." ( Anônimo )

"Do modo como a concebemos, a vida em família não é mais natural para nós do que uma gaiola é natural para

uma cacatua." ( Bernard Shaw )

"É na educação dos filhos que se revelam as virtudes dos pais". ( Coelho Neto )

"Uma união feliz entre esposa e filho é como a música de alaúdes e harpas." ( Confúcio )

"Crueldade é algo que está presente em famílias humanas por incontáveis eras." ( Frederic McGrand )

"A família é como a varíola: apanha-se em pequeno e deixa marcas toda a vida." ( Jean-Paul Sartre )

"As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". (León Tolstói)

"A família virtuosa é um barco que, nas tormentas, fica preso por duas âncoras: religião e costumes." ( Montesquieu )

"Não existem famílias que não venham, a um só tempo, do trono e da lama". ( Pedro Nava )

“Uma família formada pelo crime deve ser destruída por mais crimes.” ( Sêneca, o Jovem )

Estas frases servem para que as pessoas façam suas reflexões, e aceitem flexibilizar um pouco seus dogmas e crendices. A quantidade de frases, inclusive filosóficas e mundanas, sobre a família, revela a complexidade do tema e a diversidade de perspectivas.

FAMÍLIA VIRTUAL vs. FAMÍLIA REAL

Vivemos na era da conectividade virtual, onde as relações interpessoais se desdobram através de teclados mais do que presencialmente. Enquanto nos envolvemos cada vez mais em relacionamentos virtuais, perdemos de vista o papel que uma família deveria ter.

Desse modo, responder uma pergunta simples, como "qual o papel da família?" coloca quase todos numa saia justa.

Certamente, a relação das frases dos pensadores indica um certo desânimo, que vem desde priscas eras. Assim sendo, é possível dizer que as redes sociais somente reforçam o que a maioria das pessoas pensa, mas não verbalizam. Todas essas frases lançam, sem dúvida,  luz sobre a complexidade das relações familiares. Uma complexidade que sofre com superficialidade dos relacionamentos virtuais.

A família, base da sociedade de algumas culturas e religiões, tem um papel fundamental na formação de valores e do caráter de um indivíduo. Entretanto, a formação de cada um deteriora-se com a imposição de preconceitos, que demonizam famílias não "tradicionais".

Por isso, à medida que a tecnologia forma uma família digital, há uma tendência crescente de desvalorizar esses laços familiares reais e tradicionais. A princípio cria-se uma barreira para que as interações virtuais adquiram profundidade enquanto família, por ignorância.

SALVAÇÃO

Seja numa família virtual ou numa família real, a ideia de que alguém se salve ou alguém afunde, é, cada vez mais, uma realidade. E, na maioria dos casos, o problema nem é com este ou aquele familiar. O problema está mais em como as pessoas querem impor seus desejos, vontades e opiniões sobre tudo, e sobre todos.

Inquestionavelmente, a dualidade das experiências familiares provoca mais divergências do que convergências. E, como se não bastasse, quando o núcleo familiar recebe "estranhos" ( cunhados, novos relacionamentos etc.) fica muito mais complexo.

Enquanto alguns encontram refúgio e apoio na unidade familiar, outros enfrentam desafios e adversidades dentro de seus próprios lares. A crescente prevalência de relacionamentos virtuais pode ser uma resposta a essa dualidade. Assim, uma busca por conexões que transcendem as limitações da família tradicional pode ser problema ou solução.

MUNDO MODERNO

O mundo moderno(4) nos traz a constatação de que a frase de Marcus Aurelius é atual e com muitos exemplos. Em outras palavras, a frase contém uma advertência contra a idealização cega da família. Temos exemplos recentes de que a malícia, astúcia e hipocrisia que surgem em contextos de poder e status estão até nas "boas famílias".

Isso, surpreendentemente, nos leva a refletir sobre as relações familiares, as interações virtuais, e nossas projeções de identidade.

É inegável que as redes sociais oferecem um meio conveniente para expandir nosso círculo social e conhecer pessoas com interesses semelhantes. Entretanto, a obsessão por aparências, nos leva à negligência dos laços familiares que deveriam moldar nossa essência.

Os exemplos são claros e que atire a primeira pedra aqueles que nunca presenciaram alguma das atitudes a seguir:

Pai falando com o filho e este lendo alguma coisa no celular e dizendo: - estou ouvindo. Depois pergunta: O quê?

Membros de uma família, numa mesma casa, mandam mensagem para tratar de alguma coisa com alguém na sala ao lado.

Posicionamento em grupos de mensagens familiares provoca o corte de comunicação entre familiares na mesma casa.

Portanto, a busca incessante por validação online resulta em uma fuga da realidade familiar e até problemas mais graves. As complexidades emocionais e os conflitos exigem, urgentemente, uma abordagem mais próxima e menos virtual.

HIPOCRISIA

Enfim, infelizmente entramos na era da hipocrisia, com reciprocidade e consentimento, que vai muito além do núcleo familiar.

Os relacionamentos virtuais estão, com toda a certeza, muito longe de ficarem livres  de problemas, pelo contrário, atraem problemas. O alerta para a crueldade das pessoas de "boas famílias" e "gente de bem" reforça a hipocrisia que reina nas sociedades e no Brasil. Em toda a superfície e aparências agradáveis escondem-se muitos aspectos sombrios.

Relacionamentos virtuais, por sua natureza impessoal, facilitam a disseminação de comportamentos, ideias e atitudes deploráveis. Isto é, sem as barreiras físicas é possível que as pessoas se escondam atrás de máscaras digitais.

Desse modo, é imperativo encontrar um equilíbrio saudável entre as interações virtuais e a valorização das relações familiares. Em vez de ignorar ou idealizar uma família ideal, devemos reconhecer suas complexidades. As relações virtuais, certamente, enriquecem nossas vidas, mas não devem substituir as relações reais, principalmente da família e amigos.

Enfim, num boteco, em casa com a família ou em torno de amigos, mas com celular mais ativo que o cérebro, é muito ruim. A família, nos moldes que as culturas ocidentais forjaram, é forma de segregação. Nestes tempos atuais, isso provoca o dilema de que aqueles que pensarem "fora da caixinha" terão a pena de morte.

"Amanhã tem mais ...".

P. S.

(*)  A relação de pensamentos obedece, de certo modo, uma ordem alfabética de nomes dos autores.

(1) "Entre sem bater - Marcus Aurelius - A Família" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/22/entre-sem-bater-marcus-aurelius-a-familia/

(2) "Entre sem bater - Bernard-Henri Lévy - A Infidelidade" https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/20/entre-sem-bater-bernard-henri-levy-a-infidelidade/

(3) "Família Doriana - Maldita Propaganda" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2018/07/01/familia-doriana-maldita-propaganda/

(4) "Entre sem bater - G K Chesterton - Mundo Moderno" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/16/entre-sem-bater-g-k-chesterton-mundo-moderno/