Só por hoje
Hoje acordei atrasada. Quase meio século atrasada. Irreconhecível (ao meu próprio telefone, que não desbloqueou com a FACE ID).
Não é força de expressão. Algo mudou. Como se eu tivesse acordado de uma longa hibernação. “Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem e que, amanhã, recomeçarei a aprender”, profetizou Cecília sem nem me conhecer.
Um holofote divino ilumina meu interior, e identifico desnecessariedades. Um desassossego existencial. Uma urgência de desconstrução. Um desejo inadiável de reinvenção.
“Meus estranhos sentimentos da outra semana me parecem hoje bastante ridículos; já não me identifico com eles”, como definiu tão bem o brother Jean Paul.
Ouso me permitir buscar um novo olhar, uma perspectiva ainda não explorada por mim. E me fascino com todo um mundo novo de possibilidades. Estaria eu me tornando uma subversiva, uma estranha a mim mesma? É assustador o poder revolucionário de mudar de ideia.
“Quero dizer o que eu penso e sinto hoje, com a condição de que talvez amanhã eu vá contradizer tudo”, como disse Emerson.
Que força é essa que me leva a ler com voracidade conteúdos historicamente contrários às minhas convicções? A assistir com atenção e sem preconceito a entrevistas de até então “inimigos” ideológicos? Que chave foi essa, que virou? Quem é essa que aqui escreve?
Não é nenhuma crise existencial (ou de meia idade). É um renascimento; um batismo simbólico, de lavar toda a arrogância do suposto saber nas águas turbulentas e profundas da incerteza.
Só por hoje, me permito ser a versão intrépida de mim, sem rodeios e subterfúgios. Somente eu, uma ilustre desconhecida.