LEMBRANÇAS FERROVIÁRIAS
Corria a década de 1970 e resolvi aproveitar o que ainda resistia de ferrovias em direção ao nordeste. Com pouco dinheiro e muito entusiasmo embarquei na estação Barão de Mauá, mais conhecida como Leopoldina, ali na Avenida Francisco Bicalho, no limite da área central da cidade do Rio de Janeiro.
Como tudo relacionado a trens no país, essa que é a estação mais antiga do Brasil (1854) construída em suntuoso estilo eclético, hoje jaz como uma ruína de um momento que se propunha integrar por trens esse país continental. Agora, com a irreversível opção rodoviária, esta bela construção é a materialização de um retrato fidedigno do papel secundário desse modo de transporte, que já mostrava seu desgaste há distantes cinquenta anos atrás.
Comprei um tíquete, que na realidade não passava de um pedaço de papelão impresso com a origem, no caso Rio de Janeiro e o destino Vitória. A composição não se eximia de demonstrar precariedade, tanto externamente, como em seu interior. Por fora, seu aspecto tinha peculiaridades, integralmente revestido de lâminas de madeira, com desgastadas camadas sobrepostas de tinta ocre, que, aliás, mais tarde constatei também predominava nos prédios da companhia ao longo do percurso.
Dada a precariedade do meio circulante, ou seja, trilhos e sua deteriorada base de dormentes de madeira, combinada a estreita bitola e sinalização vertical que deixava a desejar, impedindo assim a composição desenvolver maior velocidade.
A linha não era eletrificada, gerando uma fumaceira daquelas, que acabava aromatizando tudo que viesse atrás, inclusive roupas dos passageiros.
Por incrível que possa parecer, transitar nos anos 1970 na Baixada Fluminense até atingir Itaboraí, definia um trajeto predominantemente rural. Pouco e diminuto tecido urbano se conformava ao entorno imediato às estações, e na maioria das vezes passamos direto, mesmo com pessoas de pé, ao longo das curtas plataformas.
Concluído o contorno da baía da Guanabara, rumamos em direção à região das baixadas litorâneas, e a composição mantendo livres muitos assentos. Impressionava a obstinação do insistente fiscal, que a toda hora importunava com sua repetitiva função de confirmar com mais um furo redondo, no tíquete retangular, a conformidade dos passageiros.
Uma conta rápida de furos por hora me levou à conclusão: o espaço perfurável se esgotaria bem antes do final da longa, lenta e sacolejante jornada ferroviária. Se na Baixada Fluminense a ocupação era esparsa, agora então, dava para contar as casinhas simples enquadradas pela avantajada janela do vagão.
Depois de percorrer por longo período a monotonia cromática de um canavial sem fim, enfim, pela primeira vez, o trem o fiscal comunicou que a composição permaneceria um bom tempo parada. Logo descobri a razão, um volume grande de carga precisaria ser descarregado e outro carregado nessa escaldante cidade de Campos dos Goytacazes.
E não era só isso, enquanto caminhava na plataforma com intuito de esticar as pernas, fui surpreendido pelos sons provenientes do extremo da estação, logo depois de uma porteira aberta, uma multidão partiu em disparada, provavelmente tentando garantir assento no vagão de 2ª classe.
Até então, não conseguira entender a razão de ter gasto 50% a mais por um assento na primeira classe, pois caminhando pela composição notei, que independente da classe determinada na lateral externa do vagão, internamente as poltronas eram idênticas.
Para minha alegria, o vagão nobre não permitia nem passageiros de pé e muito menos carga viva, e claro, aquele mini tíquete tinha cor diferenciada por classe.
O vagão restaurante, que até então mantinha uma paz quase celestial, agora se transformara numa sucursal da hora da xepa da feira livre, a partir daí inviabilizando seu uso regular.
O over book ferroviário já era uma realidade, então boa parte da sobra de passageiros foi se aboletar no vagão restaurante, consumindo um cafezinho ou uma água mineral, bem ao estilo parisiense. Restava aos demais passageiros se utilizar apenas do balcão desse vagão, ou fazer o pedido e levá-lo para seu assento.
Assim mesmo, como era prazeroso viajar de trem, um modo infelizmente extinto definitivamente da nossa paisagem.