O tempor(e)al, a santa e a escritora

 

O vento ruge vigorosamente na noite escura e a chuva vem forte. Natureza pura, ausência de luz artificial e sem água encanada. Pelo vidro da janela o clarão dos raios inunda o quarto, sob a trilha sonora dos trovões e da gritaria alvoroçada das árvores sacudidas pela tormenta. Os gatos quietos e de olhos arregalados na área de serviço e os cachorros enovelados em sua casa. Tensão. Adormeço, mesmo assim, pela fadiga da faina diária.

 

Acordo, ainda é noite. Tudo escuro e calmo. Passou. Tudo normal na casa: pessoas, bichos e coisas; água e luz. Graças a Deus, viva Santa Bárbara, santa de Charqueadas. No telejornal, em tempo real, o caos do temporal: árvores arrancadas, casas destelhadas, pessoas desabrigadas, ruas alagadas, cidades fustigadas. Pela manhã, novo dia, aniversário de parente quase oitentão: assar salsichão e comer com pão. Todo mundo bem na família, na rua e no bairro. Graças a Deus, viva Santa Bárbara, santa de Charqueadas.

 

Bárbara nos protegeu? Rogou e intercedeu por nós? Seu feriado ainda é observado... Quem sabe? Nunca se sabe, só se pensa que se sabe, seja assim ou assado. Enfim: tem-se fé ou se acredita, e até quem duvida tem dúvida de seu duvidar - tudo é saber e ignorância, relativas. Os céticos duvidam espistemologicamente da validade do conhecimento tido como verdadeiro; sempre há uma explicação e um paradigma a ser quebrado, processo dialético de sínteses infinitas.

 

No temporal, em tempo real, apenas vivemos, sabemos, cremos, acreditamos, ignoramos e duvidamos. "Quem vive, sabe", escreveu a escritora. Sabe o que, Clarice? Que na hora da estrela todos os gatos são pretos na noite sem estrela e sem lua? Que os salsichões tem de ser bem assados?

 

Clarice fica quieta, não responde. Bárbara sorri, enigmática, em resposta. Vá saber...