Marisa

Marisa chegou e sentou na cadeira ao lado da que eu estava sentada. Falou sobre sua irmã mais velha, que eu desconheço, contou histórias que não me interessam e sobre problemas que não são da minha conta. Aliás, seu nome foi a última coisa que eu soube, pois me dei ao trabalho de perguntar. Geralmente uma das primeiras coisas que fazemos ao falar com uma pessoa que não conhecemos, é está apresentação, de dar nome aquele corpo que se torna presença. Mas ela dispensou essa formalidade. Encontrou ouvidos distraídos. E para ela era mais urgente falar sobre a infiltração que se instalava no apartamento da irmã havia alguns meses. E todo o caos que isso estava causando. Falou sobre o marido da irmã, que está com Alzheimer e sobre a sua total falta de capacidade de cuidar dele. Soube inclusive que a irmã é a segunda esposa. E que a primeira não estava nem um pouco disposta a dividir essa responsabilidade. Sobrou para Marisa, trabalhar algum tempo para a irmã, até ser acusada de roubo pela mesma. Que a convidou a se retirar de sua casa.

Marisa gesticulava muito e olhava diretamente nos meus olhos. Mas falava baixo e rapidamente. De modo que eu tive que prestar muita atenção. Criava uma atmosfera de intimidade que não existia. Mas quem por acaso observasse a conversa diria que éramos conhecidas de longa data. Sua filha não a suportava, era nítido, apenas com meia dúzia de palavras soltas. E a recíproca era verdadeira. Elas eram opostas, segundo palavras da mesma. A filha, puxou a tia. E isso era um mistério para Marisa. E talvez o que tornasse tudo ainda mais complicado. A irmã mais velha, refletida ali, diariamente, em uma criação que devia ser unicamente sua. Imagem e semelhança.

Marisa vivia em pé de guerra com a irmã, há anos. Provavelmente desde a infância. E agora, que chegavam a terceira idade, tudo se exacerbava. A irmã tinha um marido, mesmo que esse estivesse doente. Apesar da infiltração, tinha um apartamento próprio. Apesar de não trabalhar, tinha dinheiro. O que gerava uma disparidade e acentuava uma distância criada apenas pelas duas, como se esses fatos aleatórios fossem cruciais para estabelecer o jogo de poder que determinava quem era superior e inferior naquela relação. Marisa, apesar de mais jovem, segundo suas próprias palavras, havia obtido todo entendimento sobre o mundo espiritual e sabia detectar com precisão o problema de cada pessoa. E aquilo, era como um trunfo secreto que ela possuía. Embora não tivesse mais nada além disso. E fosse alheia aos seus próprios problemas. A infiltração mesmo, que tirava mais seu sono do que da própria irmã que vivia no apartamento, não era por acaso ou consequência de uma obra mal feita. Era castigo, para a arrogância da irmã. Que mesmo assim, não estava disposta a mudar. E continuava fazendo com a caçula, no caso Marisa, o que bem entendesse.

Marisa estava exausta, mesmo assim falava sem parar. Sem espaço para retorno. Sem pausa para respiração. Sem filtro e sem pudor. Alguém naquele dia teria que ouvi-lá e calhou de ser eu.

Marisa não sabia o que fazer, com a irmã nem com a filha. Mas se eu não estivesse ali apenas no papel de ouvinte, se ela fosse capaz de me escutar também e não apenas utilizar minha boa vontade naquele dia, para despejar toda sorte de mágoas, eu diria: Marisa, você na verdade não sabe o que faz da própria vida. Nem mesmo agora. Você está perdida, eu sei. Muitos de nós estamos. Ou talvez todos estejam. Mas antes de tentar resolver a vida de todas as pessoas ao seu redor, tente primeiro se encontrar e resolver a sua.

Tiane Maga
Enviado por Tiane Maga em 17/01/2024
Reeditado em 17/01/2024
Código do texto: T7978465
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