De pulcros e pudibundos
Não sou pulcro nem pudibundo, talvez esteja, ainda que involuntariamente, mais para depravado do que para uma coisa ou a outra. Embora anseie mesmo por ser apenas normal e nada mais do que isso, gostaria de ser pulcro. Amo a companhia de pessoas pulcras! Conheço, entretanto, gente que não é pulcra, mas é pudibunda e tem raiva de quem não é.
Cuidado, leitor, a coisa é séria. Os pulcros, embora cada vez mais raros, são superinteressantes e superagradáveis, mas os pudibundos, que naturalmente poderiam ser inofensivos, às vezes se tornam perigosos. Ser pulcro é importante e bom ao extremo, não obstante a maioria pense, pelo nome, que é coisa ruim. Não posso dizer, todavia, a mesma coisa dos pudibundos, salvo quanto ao segundo aspecto.
Morro de medo da fúria dos pudibundos, pois eles confundem tudo. Até provar que focinho de porco não é tomada, já rolou muita água por baixo e mesmo por cima da ponte! Brinque com uma pudibunda e veja para onde a coisa pode descambar. Pudibundo (sim, do sexo masculino) também é um perigo.
Não diga às pessoas que elas são pulcras, porque, mesmo não sendo pudibundas, até que as coisas se expliquem, você poderá ter problemas. Não são todas, é claro, mas nunca é bom arriscar. Cuidado! Eu, por exemplo, prefiro não correr o risco: se vou chamar alguém de pulcro (do latim pulcher), já vou explicando, bem antes, o que é. Já para pudibundos, não tenho coragem de lhes dizer que o são: não o faço nem mesmo explicando com antecedência. Estou ficando é velho, não bobo. Se vivo dando bobeira, é involuntariamente, não por querer.
Rubem Braga, nosso maior cronista de todos os tempos, também era cuidadoso com isso. Na crônica “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim”, ele escreveu:
Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?
Cautela semelhante deve-se ter com cisgênero. Não saia por aí dizendo, sem antes explicar, que as pessoas são cisgênero! Se quer conservar os dentes, não caia nessa bobeira. Um dia desses, já não me lembro do contexto, eu disse, mais ou menos assim, a uma colega: “Isso é porque você é cisgênero.” Casada e pulquérrima, ela me olhou, olhou e ficou calada: não disse nada. Depois, refletindo sobre a coisa, quase morri de medo. Imagino que ela tenha pensado assim: “Doutor, vou fingir que não ouvi isso. Nem quero acreditar que o senhor esteja me desrespeitando.”
Tenho amigas pulcras, pulquérrimas. As escritoras Sandra Neves, de Lisboa, e Fernanda W. Borges, do Rio de Janeiro, por exemplo, são pulquérrimas. Ah, são! E não são pudibundas. A Carmem Sílvia Silva da Silva, ex-colega de Câmara Municipal de Marabá, também. A elas e tantas outras amigas e amigos, pulquérrimas e pulquérrimos, minhas homenagens.