Como vaidade e orgulho se misturam
O mais feio da cidade era também o mais vaidoso, e por conseguinte ele se considerava bonito. Os verdadeiros vaidosos, mesmo precisando, jamais tencionam uma plástica... As motivações da sua vaidade imperam acima da sua feiura; naquele pequeno vilarejo, provinham dele e do seu valor superestimado, não havia outro. Famoso em toda a redondeza, pois somente ele exercia as atividades de relojoeiro. Exímio. Para conserto, não havia igual, chegavam-lhe relógios parados até de lugares maiores e distantes. Tido, de leve, como meio surdo, mal ouvia, mas, em voz baixa, compreendia com perfeição elogio, sem perder uma palavra. Tudo começou num tempo, em que não se substituíam essas joias, comprando outras, como hoje: o que se quebra vai ao desuso ou ao lixo. Relógios de pulso, de algibeira, de parede, com qualquer problema, encontravam, nas suas habilidosas mãos, com ajuda do seu monóculo, eficiente solução. Solteirão, dedicava-se apenas a isso e à sua vaidade... E quanto mais vaidoso, mais indiferente às mulheres, e mais feio se tornava, sem as desejadas qualidades de conquista.
Excêntrico, em razão de uma inexplicável excentricidade. Contudo, conscientemente, era o único que, com competência, sabia de como fazer relógio quebrado trabalhar. Fama pela qual lhe traziam outras coisas em pane, que não funcionavam mais, como caixinhas de música, barômetros, binóculos, microscópios e até certos aparelhos médicos, mais modernos. Objetos que, à vista, pareciam hermeticamente fechados e impenetráveis, de repente, abriam-se diante dele e ele entrava no seu interior, como um bom cirurgião em qualquer mais invasiva cirurgia. Isso lhe aumentava tremendamente seu valor e seus méritos, enaltecendo seu reconhecido orgulho. Até se define que podemos ser orgulhosos sem sermos vaidosos, mas, ao contrário, todo vaidoso também é orgulhoso, além de outras coisas ruins.
O orgulho é um sentimento de prazer, quando achamos satisfação com o nosso consciente valor, com a honra e com um suficiente amor próprio, o que até serve para afirmar nossa personalidade e evitar anulação pessoal, em certas ocasiões de trabalho. A vaidade, por sua vez, envereda-se por caminhos doentios do narcisismo, chegando a estágio patológico, faminto e carente de adulação, de excessivos elogios e de até insincera admiração. Somente nos vaidosos, os bajuladores de carreira encontram, junto aos seus chefes, um terreno fértil às suas bajulações. Os vaidosos, ao contrário da bajulação ou até dos elogios irônicos, sofrem dores nos seus egos, se tratados como objetos indiretos de alguma crítica, mesmo quando construtiva.
A vaidade se fundamenta no fingimento, no intrínseco “faz de conta”, que culmina “nos delírios de grandeza”. Conhecem-se casos patológicos, naqueles que se afirmam ou procuram se afirmar como o mais em tudo: na sabedoria, na beleza, no poder, na riqueza ou na profissão... O vaidoso exige que se reconheçam, verbalmente ou por escrito, ou melhor, de público, tais qualidades e valores. Ele necessita de uma valorização que lhe venha do externo, porque , no seu interior, ele é consciente da sua realidade; dos seus limites; do que lhe é fictício e ilusório; na construção da sua vaidade. Comporta-se como o “modelo da onipotência narcísica da criança”, no qual ela tem o melhor pai, o melhor brinquedo. Tal qual como o acima relojoeiro do pé de serra, tem-se nele a criança que não cresceu.
Ao escutá-lo, nele tudo é melhor, entre os amigos, o vaidoso nos faz rir, porque na ausência dos elogios, ele próprio se elogia, como se isso fosse um permanente “modéstia à parte”, contudo que se alimente sua faminta vaidade. Enfim, o vaidoso, em Saint-Exupéry, os outros e inclusive o caro leitor, somos apenas seus admiradores... E assim vive ele, no seu mundo que é o da Vanitas vanitatum et omnia vanitas ou da “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.