Nota de falecimento
Se falarem mais de mim do que de Jesus Cristo,
chame a atenção deles.
(Vinícius de Moraes,
Se eu morrer antes de você)
Transcrever todo o poema de Vinícius seria justo e, julgo, suficiente. Contudo, há dentro de mim verbos em busca de papel. Tudo de que precisava era uma bola quicando, esperando o chute. Eis que a vejo diante dos olhos. Óbvio, o que desperta em mim tal movimento são os noticiários jornalísticos das últimas horas. Mais especificamente, aqueles em torno a um certo morto, cuja paráfrase assim se anuncia: vocês vão ter que me enterrar.
Mas voltemos ao poema...
Se eu morrer antes de você é uma mistura de finitude e infinitude, uma ponte entre o que é temporal e o que é eterno. E se tem algo de que a poesia dá conta é explorar universos e sentimentos diante dos quais a razão pura, por fim, precisa se calar, pois insuficiente. A poética tem a virtude e o dom de traspassar o finito e lançar-nos em outras possibilidades. O amor, a beleza, os dramas da vida, os seus mistérios, um povo, uma língua, uma história, o nascimento, a morte... – tudo é matéria prima para a poesia e os seus caminhos para extrair verdades são bem outros. A leveza do seu tom, a concisão da ideia livre de superficialidades, os cortes cirúrgicos, as métricas ou a assimetria, uma vazão de emoções em apenas um fio d’água, a metáfora, o paradoxo, a parábola e tanto mais revelam-se propriedades suas. Bem-aventurados os poetas que criam e recriam, constantemente, a vida.
Mas eu falava dos noticiários...
Quando, antes de nós, morre um pobre coitado em algum rincão por aí, morte maestralmente anunciada por Ferreira Gullar em Notícias da morte de Alberto da Silva (poema dramático para muitas vozes), quem se interessa? Bem descrito pelo poeta, é, de fato, assim que se conclui:
Enfim este é morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade.
Porém, quando o falecido é um famoso, o rosário é outro. Quanta louvação. O fato vira efeméride. Glórias e mais glórias e somente glórias em seu currículo. Loas se amontoam internet afora. Sinos dobram, autoridades se condoem, o luto oficial é estabelecido... Um herói nasce! Vanitas vanitatum, diria o Eclesiastes. Vaidade das vaidades! E o anônimo que morreu, quem se lembra dele? Somente o poeta em seus versos:
Não foi nada de mais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu
Que nos importa agora se quando menino
o seu grande sonho foi tocar violino?
Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?
Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?
Que nos importa agora se algum dia ele quis
conhecer Nova York, Londres ou Paris?
Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?
Mas o que vim mesmo falar...?
Minha função sacerdotal faz com que eu presida funerais. Há em todos eles, independente de posição social que ocupe o defunto – afinal, a morte iguala-nos a todos –, três coisas que busco: consolar os que choram, falar de Jesus Cristo e lembrar-me de que um dia eu serei o próximo. Porque diante da morte de alguém, precisamos apenas disto: consolação, Jesus Cristo e consciência da finitude. O mais, Vanitas vanitatum, et omnia vanitas! Poeira... E aos vermes: vocês vão ter que me engolir...