INVERNO NA ALTITUDE

O inverno acabara de chegar, e para quem gosta de montanha, a sensação era a de abertura do parque de diversões. Explico para os não iniciados, que esta estação se caracteriza por maior estabilidade do tempo, com baixa precipitação de chuva, facilitando, e como, caminhadas e escaladas em regiões montanhosas.

Estávamos em meados da década de 70, e alguns amigos trilheiros me convidaram para uma vez mais, fazer a travessia Rebouças/ Mauá. Desta vez, sairíamos do Rio, logo depois do almoço, direto para Itatiaia, na Serra da Mantiqueira.

A novidade vinha por conta de um belo corte de carne e algumas garrafas de vinho chileno. Fui logo intimado a pagar minha parte da conta, que contava ainda com uma carga de chocolates para a sobremesa e se sobrasse, para serem degustados na longa caminhada.

O plano era montarmos acampamento numa área plana próxima à localidade denominada Geladeira, que dava uma pista do funcionamento da temperatura na madrugada. Barracas montadas, sleepers esticados e mochilas perfiladas nas laterais. A tarefa agora era acender uma fogueira e começar a categorização dos vinhos, todos na temperatura do ambiente, algo como 12°, acompanhada de uma peça de picanha.

Para quem acampa em altitude, a presença de nuvens é sempre bem vinda, estas formam uma espécie de colchão, que mantém parte do calor na atmosfera. Por outro lado, noites escandalosamente iluminadas pelas estrelas, são indicadores robustos de temperatura negativa.

Tudo transcorria na mais perfeita ordem, tudo na mais santa paz, salvo lufadas insistentes de uma gélida brisa. Então, a comida, o vinho, o carvão e a disposição, quase simultaneamente se esgotaram, era hora de se recolher.

Entrar na barraca e tentar se isolar do ambiente era a missão seguinte. Um macete para esquentar saco de dormir, era respirar lá dentro com tudo fechado, executei e o mandamento à risca. Depois, tentei contar carneirinhos, usar variadas artimanhas para encontrar o sono, mas nada conseguia recuperar o sono.

Depois da carne com mais sal que o usual, e mais álcool que o habitual, o resultado não podia ser outro, boca seca, aliás, muito seca. Abro uma nesga do zíper da barraca buscando o cantil, nem senti que estava gelado, graças à luva de couro improvisada para isolar o frio.

Saí do saco e sentei para me hidratar, surpresa!!! A temperatura externa mudou o estado da água, passando de líquido para sólido, ou seja, uma tarefa aparentemente trivial, agora ganhava contornos complexos. A boca seca, não tomava conhecimento da situação, clamava por água, língua e boca se transformaram em parceiras desse desejo inadiável.

Pronto, agora precisaria vestir casaco, calçar tênis e me preparar para andar por caminho nada regular, pelo muito escuro sopé das Prateleiras até um laguinho que represava a água de uma nascente.

Nova surpresa, a superfície do depósito também estava sólida como uma pedra. Tentei usar o gargalo do cantil para romper a camada em vão. Nessa altura, minha língua começava a se colar pelas laterais da boca.

Uma cena completamente non sense, um sujeito circulando na madrugada a procura de uma pedra pontuda ou pesada o suficiente para destruir aquela camada dura, que impedia o acesso ao imprescindível líquido para o momento. Lembrei da lanterna, que normalmente carrego nas caminhadas e que até aquele dia tinha sido de pouca valia.

Nada como a tecnologia bem empregada, nesse momento o caminho se transformou, uma pedra pontuda surgiu na minha frente, estava agora a poucos minutos de saciar a sede. Quebrar o gelo foi fácil, complicado foi tirar a luva, e depois manter a mão submersa junto ao gargalo do cantil até enchê-lo.

Enquanto tentava voltar para os braços de Orfeu, ouvi barulho nas barracas vizinhas. Só ao amanhecer soube que as desventuras da madrugada ocorreram de forma coletiva, porém, com horários distintos.

Depois de uma breve refeição partimos para Mauá, enquanto o grupo mais sedentário desceria até a Dutra e retornaria a Serra da Mantiqueira pela estrada de Mauá.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 08/01/2024
Código do texto: T7971849
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