UM LIVRO II
PALAVRAS DA PROFESSORA ROSA
Nelson Marzullo Tangerini
A professora Rosa Maria dos Santos era namorada de meu amigo Carlos Gilberto Pessoa da Silva (mais conhecido no meio literário da época como Gilberto Pessoa). O poeta, ao ler meu livro “Venus de Millus”, em estado bruto, achou que eu devia mostrar meus textos à sua Rosa, professora de Língua Portuguesa e Literatura.
Naquele momento, começava a fazer faculdade de Português/Literatura, na esperança de me aprofundar no estudo da língua e, quem sabe?, ser um futuro crítico literário, atividade policial da qual desisti.
Gilberto, amigo da Faculdade de Comunicação-Jornalismo (FACHA) e de boemia, escrevemos uma centena de poesias nos bares da Lapa ou de Botafogo para as musas que passavam diante de nossos olhos sempre atentos. Muitos desses escritos acabaram se perdendo nas gavetas do tempo. Outras, mal alinhavadas, e falo do que escrevi, foram para a lixeira amiga.
Gilberto Pessoa se foi. E Rosa? “O cravo brigou com a Rosa” e eu não sei por onde ela anda. Talvez nem se lembre mais de mim e do que escreveu, um dia, para as minhas mal traçadas linhas de boêmio, à época, incorrigível.
Eis as palavras de Rosa:
“VENUS DE MILLUS
Num poema intitulado ‘Pessoal Intransferível’, Torquato Neto nos diz: 'Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos’.
Em seu “Venus de Millus”, Nelson Tangerini nos apresenta um poema (a seu amigo Gilberto Pessoa), que pode ser considerado uma recriação do que foi posto em questão por Torquato. A ambiguidade de Torquato nos toca porque, com a chamada ‘modernidade’, ‘poesia’ está sendo tudo aquilo que as pessoas ‘fazem’ e batizam de ‘poema’.
Seria interessante se a constelação de poetas do Brasil crescesse e procurasse formas de melhor veicular seus trabalhos. Acredito demais no crescimento das pessoas.
Em ritmo de aprimoramento, a poesia urbana de Tangerini nos mostra esse lado oculto e mascarado da grande cidade: os segredos, o brilho falso, o out-door provocante, o ônibus enlatando pessoas e os amores perdidos. No máximo, números de telefones gravados ou escritos à socapa em pedacinhos de papeis que se esfarelam quando lavada a roupa. Eis o retrato visual/poético desses amores voadores. As descobertas permanecem encobertas. “Eu sorrio para minha alma e para o meu coração...” porque seu riso se perde no corrimão do ônibus. É como se o indivíduo dissesse: “Eu não vejo saídas”.
Em ‘Graffitti’, percebemos a manifestação (ainda nas ruas) dessa melancolia filosófica mesclada de mitos (Osíris) e a natureza viva/morta: “Não quero morrer aos poucos como o mar”. Os pensamentos eróticos fazem parte dessa fantasia/poética – a própria Venus de Millus esquartejada e fria no mármore, produzindo pulsares nos corações como o ‘apelo dos seus pelos’. O amor e sua realização distante ocupam a cabeça do poeta de forma prosaica e tímida. Permanece a frieza deste planeta e a solidão perdida no ‘pantanal do silêncio’.
A singularidade de alguns poemas – tirados, às vezes, do nada – é que fazem o brilho de certos artistas e, nesses exemplos, Tangerini se mira. Ele busca Fernando Pessoa, vitamina e substância para seus textos. E quem não o buscaria? Agradecemos aos mitos que existem e nos guiam.
A poesia visual de Tangerini ainda nos faz crer na generosidade que o poeta traz dentro de si. Mesmo tentando, mesmo errando: ‘Hoje sou como o vidro / à prova de balas / que firam a arte / e à vida do artista’ “.
O texto de Rosa Maria dos Santos, de março de 1985, acabou, por fim, me deixando perplexo diante de tais descobertas feitas pela professora em textos de um jovem poeta que buscava o domínio da poética. Esse domínio ainda faz com que eu entre em conflito comigo mesmo. É uma luta eterna de todos os poetas (pelo menos deveria ser). Escreveu Drummond, certa vez, que deveríamos penetrar surdamente no reino das palavras.