Aí é que está o busílis
Na fila do correio, encontro Euzebiozinho. Cabisbaixo, receoso de encarar o mundo. É assim desde a faculdade... “faz tempo, ô se faz”, comenta, como se adivinhasse meu pensamento. Assinto com a cabeça. O tempo fez com que ficássemos assim: sem assunto feito desconhecidos que se cruzam em uma repartição qualquer.
Euzebiozinho encara com ar filosófico o escarro que alguém largou no piso. Parece abatido.
O cabeludo à minha frente chia: não é possível, só um funcionário pra atender!
Continuo a observar meu antigo companheiro: bastante grisalho, óculos tortos, roupas largas e amarfanhadas, camisa manchada, encurvado. A pandemia, definitivamente, não fez bem ao pobre do Euzebiozinho.
Confessa, em um suspiro, que está cansado. De tudo, frisa, sem me encarar. Quer desabafar, percebo. Na faculdade era assim: quando se perdia na página de uma doutrina ou em um panfleto do mural, era batata: precisava desabafar... como nos velhos tempos, lhe empresto os ouvidos. Ele os aceita. De bom grado, a julgar pelo sorrisinho amarelo que se esboça entre a barba malfeita.
“Amigo, ando cansado. Aliás, farto. Todo dia, a mesma ladainha lá na secretaria... sim, continuo na prefeitura... e a ladainha é a mesma de anos. Mas a falsidade, a hipocrisia e o cinismo daquela gente é que me impacientam e me fazem perder a fé no bicho-homem. Ontem, pra você ter uma ideia, uma mocoronga falou, com todas as letras, que eu devia trabalhar menos e fazer como ela porque, sendo servidores efetivos, nada vai nos acontecer. Descartou a bituca na janela, e arrematou: fazendo muito ou pouco, nosso vencimento é o mesmo. Foi pra cantina, ignorando os que esperavam atendimento... se parar pra pensar, errada ela não está. Porque, nesses anos todos, nunca vi um servidor ser punido. Mas a fala dela é asquerosa, antiética, tira do sério até o cristo. E reforça o discurso do povo, e de certos políticos, de que o serviço público não presta, que é um mafuá onde transitam parasitas indolentes à espera dos vencimentos. Eu discordo mas, infelizmente, muitos servidores contribuem pra essa concepção. Por isso, amigo, minha sina é triste. Toda tarde, aquela lengalenga em volta de mim; falam de tudo e, principalmente, de todos. E trabalhar que é bom... Deixam sempre pro dia seguinte, ou pra alguém fazer. Nessas horas, me sinto um alienígena que abandonaram no meio daqueles humanos preguiçosos, inoperantes, cínicos. Sei que não devia dar bola, que devia continuar fazendo minha parte, bater o ponto e voltar pra casa com a consciência tranquila. Mas, é difícil. Noutro dia, uma boçal disse que destilo ódio com minhas ironias... Tudo porque comentei que, contratada que é, devia se colocar no lugar dela e parar de se intrometer em assuntos de efetivo. Ih, não gostou, me chamou de tóxico, ameaçou de se queixar ao prefeito. Vai e dá um abraço nele por mim, eu disse. A criatura tem as costas quentes, sei, mas não abaixo pra qualquer um, não. Amigo, estou farto. Farto da mediocridade, farto de nadar e sempre morrer na praia. Farto de produzir, e os colegas puxarem pra trás. Outro dia, soltaram esta pérola: quando determinado servidor se empenha em produzir muito, prejudica aqueles que têm dificuldades e não conseguem acompanhá-lo... Ou seja, ao invés de mandar aquela cambada produzir, querem que eu reduza o ritmo! Quem trabalha, incomoda. Sinto-me desmotivado, essa é a verdade. O serviço público - e suas regras estúpidas, sua burocracia arrogante, seus desmandos irracionais – é desmotivador, desalentador. E digo mais, é enlouquecedor. Quase sempre me sinto perdido em emaranhados de ordens e contraordens, rodeado de índios que se julgam caciques. Semana passada, a chefia sugeriu que preciso me afastar, que devia solicitar férias-prêmio ou licença. Vá viajar e arejar as ideias, foi o que disse.... desde o entrevero com a contratada circula o burburinho de que não estou batendo bem da cachola. A faxineira me contou. Loucos são eles, não eu! Estou ‘em pleno gozo de minhas faculdades mentais’, como dizia nosso professor. Lúcido o suficiente pra enxergar o caráter daquela corja. Não me suportam porque digo a verdade. Como não tenho rabo preso com ninguém, me dou o direito de falar o que penso. E dane-se se me criticam pelas costas. Mas esgota tanto viver num lugar desses... chego em casa desanimado, a cabeça pesada, não consigo nem prestar atenção no noticiário. Quando deito, o sono custa a vir. Para ser curto e direto, amigo: estou de saco cheio com aquele bando de cretinos.”
Durante todo o tempo, Euzebiozinho não deixou de mirar o escarro. Os ombros cada vez mais encurvados, o rosto hirto como um boneco de madeira.
26, em vermelho-sangue, brota no painel.
A fila retoma a marcha. “Num era sem tempo”, o cabeludo resmunga.
Euzebiozinho, seduzido pelo escarro, sequer percebeu que o funcionário se ausentara por uns bons minutos. Dou-lhe um empurrãozinho. Ele se arrasta ao balcão. À distância, parece um senhorzinho às portas da aposentadoria.
“As correspondências tão sendo entregues mais devagar porque estamos sem pessoal”, o atendente informa rabiscando qualquer coisa num papel.
Euzebiozinho acompanha a caneta com os olhos. “Todo mês, os boletos chegam com atraso e tenho que pagar juros...”, argumenta.
“Entendo, senhor, mas não podemos fazer nada.” Há desdém no sorriso do atendente. Euzebiozinho também nota. Diz “isso é um absurdo”, brada que vai reclamar na ouvidoria.
Aí é que está o busílis, tenho vontade de alertá-lo, tal como aquele personagem do Rubem Fonseca. Todavia, imperativo, o 27 tinge o painel, me convocando.