Entre Sem Bater - As Narrativas
Bernardin de St. Pierre disse:
"... os homens não desejam ouvir narrativas, exceto aqueles sobre os grandes e poderosos, que não têm utilidade para ninguém..." (1)
Jacques-Henri é daqueles personagens da história que estão como reencarnação em muitos dos epistemólogos de rede social. Sua frase reflete, sem dúvida, o que pensam os orientadores midiáticos de hoje em dia. As pessoas nas redes sociais são, em sua maioria, ouvintes assíduos das narrativas inúteis dos grandes e poderosos. Perdemos !
AS NARRATIVAS
TRANSFORMAÇÃO
A palavra narrativa(*) tem uma longa história, originalmente associada à arte de contar histórias, relatar eventos ou expressar experiências. Ao longo do tempo, as narrativas se tornaram, certamente, uma ferramenta na influência da percepção e compreensão coletiva dos acontecimentos. Por isso, nas redes sociais contemporâneas, testemunhamos uma transformação notável dessa palavra e suas derivações. De uma expressão da diversidade de histórias passou a ser uma ferramenta de manipulação, distorção e imposição de opiniões.
Originalmente, as narrativas eram a forma de comunicação do relato de fato, da ficção, mitos e diferentes pontos de vista. Contudo, parece que a frase de Bernardin de St. Pierre impregnou os neófitos das redes sociais. Em tempos de "big brothers" é assustador como as subcelebridades transformam-se em grandes e poderosos. Mas, igualmente como disse Bernardin de St. Pierre, estas narrativas continuam sendo inúteis.
Se antes as narrativas eram uma maneira de entendermos o mundo e compartilhar nossas experiências, hoje é pura narrativa ruim(2). Como se não bastasse o advento das redes sociais, as narrativas tornaram-se um terreno fértil para a batalha de tolices.
BATALHAS VIRTUAIS
Se, anteriormente, as narrativas eram uma opção de busca pela verdade ou ficção para entender o mundo, agora cedeu lugar às perspectivas particulares.
As redes sociais, inquestionavelmente, proporcionaram uma democratização da informação. Com toda a certeza, qualquer pessoa com acesso à Internet, pode compartilhar suas narrativas, histórias e opiniões. Todavia, essa democratização também trouxe consigo desafios significativos.
À medida que as plataformas evoluíram, percebemos uma tendência preocupante e que provoca verdadeiras batalhas virtuais. A transformação da narrativa é, atualmente, uma ferramenta de poder. Nas narrativas, a verdade transforma-se em prol da promoção de agendas pessoais ou de grupos.
Um dos principais catalisadores dessa transformação foi a ascensão das chamadas "bolhas de filtro" ou "câmaras de eco" nas redes sociais.
Algoritmos inteligentes alimentam o conteúdo que se alinha às preferências do usuário, criando realidades da polarização e das batalhas.
Assim sendo, as pessoas ficam mais susceptíveis e expostas a informações que confirmam suas crenças e dogmas preexistentes. Desse modo, cria-se um ambiente propício para a formação e propagação de narrativas unilaterais ou falsas.
SER VIRAL
A insana busca por tornar qualquer opinião ou narrativa viral, assumiu papel significativo nesse processo de loucura e distopia coletiva.
Em um ambiente onde a atenção é um recurso valioso, as narrativas mais sensacionalistas e que provocam polarização espalham-se como um vírus. Por isso, uma narrativa de um fato, onde a precisão, a coerência e fidelidade deveria ser o foco, cede lugar à mentira(3). Desta forma, quase tudo que é em prol da visibilidade, da aceitação e do emocional toma conta das narrativas no mundo digital.
Além disso, as redes sociais têm o poder de amplificar vozes específicas, permitindo que grupos influentes imponham suas narrativas aos outros. Esse fenômeno é particularmente evidente em contextos políticos, onde a polarização cresce pela disseminação seletiva de informações. As narrativas de um grupo podem prevalecer sobre a verdade objetiva, alimentando a desconfiança e minando a integridade do discurso público.
A distorção da narrativa também tem enorme impulsão através do fenômeno das "fake news" e da desinformação ampla. Com a disseminação viral de informações nas redes sociais, manipula-se a percepção pública através de versões e não de fatos. As narrativas falsas objetivam influenciar a opinião pública, confundir os espectadores e promover agendas específicas.
TEMPOS MODERNOS
Enfim, os tempos modernos mudaram alguns personagens, mas a ideia de Bernardin de St. Pierre permanece bastante atual. Senão vejamos, as pessoas adoram seguir influenciadores com pouco ou nenhum conteúdo pelo "poder" que eles aparentam. Por outro lado, o conteúdo dessas subcelebridades é, cada vez mais, uma verdadeira inutilidade. Os exemplos estão aí, desde que começaram a remunerar essas pessoas pelas visualizações de seus seguidores e publicidade.
Outro aspecto a se considerar nestes tempos modernos e nestas narrativas é a desvalorização da expertise e da verificação de fatos.
Nas redes sociais, todos podem ser "contadores de histórias", independentemente de sua competência ou conhecimento sobre o tema. Isso leva a um ambiente onde opiniões e narrativas pessoais frequentemente ganham mais destaque do que informações e evidências sólidas. A ideia de que todas as opiniões são igualmente válidas pode minar a busca pela verdade objetiva.
Por exemplo, se eu divulgar uma informação, os primeiros a comentarem dizem: - onde você ouviu isso. Logo após aparecem os "doutores" do Google refutando as coisas em função de gostarem ou não do que está escrito. Tornou-se muito comum, e a maioria das pessoas age assim, comentar em função do agente da comunicação, e não da narração.
Triste fim de uma sociedade que não aproveita as modernidades tecnológicas e não evoluiu o modo de pensar. Dar espaço, por exemplo, para narrativas e narradores que defendem a terra plana, não tem absolutamente nada de evolução humana.
NÃO TEM RETORNO
Em suma, o caminho que estamos, rapidamente, trilhando, não tem a mínima possibilidade de retorno.
A polarização das narrativas trouxe sérias implicações na esfera social e comportamental. A demonização de pontos de vista opostos e as narrativas que dividem as pessoas em campos ideológicos antagônicos, veio para ficar. Surpreendentemente, tecnologias que deveriam contribuir para a cooperação e solidariedade, promovem a fragmentação da sociedade. Por isso, cada vez mais, o diálogo construtivo e a compreensão mútua saem de campo, dando lugar a hostilidade e a intolerância(4).
Com toda a certeza, a transformação da palavra "narrativa" reflete uma mudança fundamental na forma como nos comunicamos. O desafio agora é encontrar maneiras de equilibrar a liberdade de expressão(5) com a responsabilidade e inteligência. A hipótese de promover a diversidade das perspectivas sem sucumbir à manipulação e restaurar a confiança na busca pela verdade é o objetivo.
Por isso, é imperativo que as plataformas, os usuários e a sociedade como um todo estejam cientes dessas dinâmicas de narrativas. E, desse modo, que possamos trabalhar na tentativa de termos um ambiente digital de informação e respeito. E que, enfim, voltem as narrativas de fatos ou até mesmo as ficções, com a identificação de cada uma como realmente é.
"Amanhã tem mais ..." narrativas e outras demonstrações de fatos e situações do cotidiano que nem todos conseguem ver.
P. S.
(*) A narrativa verdadeira, a exposição, a argumentação e a descrição, são quatro modos retóricos clássicos do discurso humano. Todos o resto é, sem dúvida, conversa pra boi dormir.
(1) "Entre sem bater _ Bernardin de St. Pierre - As Narrativas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/07/entre-sem-bater-bernardin-de-st-pierre-as-narrativas/
(2) "Madrasta da narrativa ruim" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2021/12/22/madrasta-da-narrativa-ruim/
(3) "Entre sem bater - Francis Bacon - A Mentira" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/04/01/entre-sem-bater-francis-bacon-a-mentira/
(4) "Entre sem bater - Montesquieu - A Intolerância" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/11/27/entre-sem-bater-montesquieu-a-intolerancia/
(5) "Entre sem bater - Benjamin Franklin - Liberdade de Expressão" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/12/24/entre-sem-bater-benjamin-franklin-a-liberdade-de-expressao/