Recomeço
Dois gatos deitados, lado a lado, dormindo sobre o piso de mármore, o ventilador Mondial ligado à velocidade 2, o tic-tac-tic-tac do relógio na parede, marchando o espaço; do outro lado da janela, um carro passa, duas motos piam, dezenove crianças soltas no asfalto... Tudo igualzinho ao ano passado, com exceção do calor, que parece maior e mais quente.
Nos Frios, parte razoavelmente ventilada de União dos Palmares, onde moram alguns insociáveis, diz a metodologia da meteorologia que faz 40 graus de calor, antes mesmo do sol nascer. Talvez seja toda essa temperatura um prelúdio do que está por vir. Talvez seja o momento de pôr em prática efetivamente o que está na Escritura, e o dono reivindicar ao locatário o que é seu. Eis a ocasião fundamental para o recomeço: aqui, por estas paragens, o ser humano comprovou ser inabitável: esbagaçou geral.
Mas antes, Eva, a jovem corredora amadora, de 19 anos de idade, e casada, necessita superar a mania tentadora da qual padece, que consiste em, logo após escovar os dentes, tomar um golinho de água. Eva já mudou o bebedouro de lugar, tirando-o de perto do banheiro, local onde escova os dentes, fez terapia, consultou os Búzios de Odete Sensitiva, tomou vários remédios, todos ineficazes.
O mundo, portanto, não pode recomeçar antes de Eva concluir seu maior objetivo para 2024, e finalmente receber alta. Igualmente, é preciso, ainda, consertar a inflação, ser feliz, descobrir o remédio para a calvície precoce ou tardia, alimentar todos os gatos, ligar seta ao realizar conversão à altura do Beco do Roncador, controlar o peso e a velocidade, comer diariamente sopa de legumes, dizer e praticar "Take it easy", evitar a morte todos os dias, ainda que em vão, largar o emprego, arrumar um emprego, pagar impostos, sonegar impostos, impor-se, submeter-se, escovar os dentes, tomar uns golinhos de água...
Depois, só depois, finalmente chamar o garçom.