A grande dúvida

Já é janeiro e Luiz Pacato vai terminando de preparar o arroz de leite e a farofa, enquanto a fava e a criação vão esquentando. Do lado de fora, Jay que já havia terminado de varrer o espaço e de organizar as mesas, estava pendurando na parede e cobrindo com a bandeira de arco-íris o cesto com os livros que ficavam disponíveis para os clientes. O garçom caboco, depois de suspender a livraria do bar à esquerda da porta, caminhava para a cozinha. Objetivava comentar com Luiz sobre um assunto que, muito provavelmente, não apresentaria relevância alguma. Quando de repente olhou para trás. Logo abriu um grande e belo sorriso, tamanho a ponto de embranquecer seu rosto barbudo.

— Olhe aí quem já vem chegando! — Indica Jay, com a voz desafinada, pois não conseguiu conciliar a pressa de dar a notícia com a espontânea exposição dos seus dentes.

Pacato, que quando trava no fogão não quer mais sair, inclina-se para a porta e já enxerga com à primeira vista, apontando lá no alto do cemitério, o carro branco de Genésio. Dava para perceber que se tratava do veículo do professor aposentado pelo amassado que apresentava logo na frente, no lado direito do para-choque, e pela fumaça que saia não pelo escapamento, mas pela janela do motorista.

— Como é que pode, um homem desse já tá fumando?! Isso, dentro do carro a catinga deve tá grande. — Fala Luiz com uma mistura de felicidade, preocupação e uma pitada de ironia.

— Eu quero é saber se esse véi não vai tomar juízo. Se continuar nessa vidinha é danado ficar nesse alto e não descer mais. — Fala o garçom preocupado enquanto cruzava os braços.

— Ele vai tomar é cana. Avie, vá logo colocando a cachaça e o limão na mesa dele — Ordena Pacato que vez ou outra véstia a roupa de patrão.

— Você mata esse professor e não fica rico, Pacato! — Fala Jay provocando seu chefe.

Sem deixar de mexer a farofa, Luiz rebate seu garçom com o veneno de uma jararaca. — Quem deve querer muito a morte dele é a senhora, que visa ficar com a pensão.

— Eu não tenho nada com ele, só estou preocupado — se defende o pobre garçom.

O carro branco estaciona debaixo da caraubeira à direita do bar. Com uma mão na porta e a outra no teto do carro, sai de dentro aquele homem. Alto, grisalho, camisa polo um pouco arrochada, pois a barriga é de quem já bebeu muito, uma bermuda que não passa do joelho e um chinelo de dedo, daqueles em que a casca do calcanhar já está sendo lixada pelo chão. Caminha até a sua mesa, que ficava do lado direito da porta do bar e já era considerada cativa. Antes que Genésio sentasse, Jay já estava a colocar um pires com limão partido sobre a mesa, abre a lata de cachaça que preservava sua temperatura dentro de um isopor e põe uma dose de dois dedos no copo americano.

— Deixe-me pelo menos dar um “Bom dia” que é pra vocês não saírem espalhando por aí que sou um bêbado mal-educado — Genésio anuncia sua chegada com o humor irônico e inteligente de sempre.

— Se fosse para o dia ser bom eu tava deitado em uma rede na beira do mar — com tom provocativo, fala Pacato, que vestia o personagem de dono bruto de bar sempre que a Carranca abria. — O que eu quero saber é se quando você morrer vai deixar pelo menos uma ripa pro meu garçom?

— O pior que essa praga já foi tantas vezes me deixar em casa quando não tenho condições de dirigir, que já deve ter parte do carro. — Afirma Genésio, mostrando-se preocupado com seu inventário.

Com voz de madame orgulhosa, Jay expressa seu desejo de viúva enquanto caminhava em direção a mesa de Leandro e Dedé que acabavam de chegar. — Eu mesmo não quero carro acabado, não. Pode providenciar a troca por um novo antes de bater esses chinelos velhos.

— Eita, que ela é exigente — Pontua Pacato seguindo com uma risada.

— Ei, mas o que é isso? Vocês já estão planejando minha morte? — Genésio pergunta assustado.

— De forma alguma. Mas bebendo e fumando desse jeito, quem deve já está com esse plano em execução é o senhor — Jay acusa Genésio enquanto voltava para pegar uma cerveja e avisar a Pacato que na outra mesa iriam querer uma porção de fava.

— Estão vendo aí, Leandrão e Dedé? Venho aqui tomar uma e a primeira coisa que ganho é um atestado de óbito. Esses dois querem me matar! — Com os braços abertos, Genésio grita pedindo socorro aos rapazes na outra mesa.

Se não fosse por ser única, Caraúbas seria igual a qualquer outra cidade do interior potiguar. Cidade onde todos se conhecem (inclusive até de mais), cuja os bares são os principais pontos eruptivos da cultura caraubense. Leandro era um boa pinta, do tipo que mesmo sem recursos estéticos conseguia ser galanteador. Era um jovem que estava adiando a maior idade a mais de quarenta anos. Dedé já havia visto mais de sessenta festas de São Sebastião, porém, ainda trabalhava. Era funcionário público municipal, vigilante de um posto de saúde. Como frequentemente ia trabalhar sobre o efeito de algumas doses de cana, era conhecido como Dedé Dormilante.

— Ninguém é doido de matar o senhor não, Genésio. Até seu pai, nosso senhor, cria ódio no coração por quem fizer isso! — Grita Leandro levantando o copo com a cerveja que Jay acabava de servir.

Dedé que já havia tomado algumas doses no caminho até a Carranca somadas com a falta de trena para palavras que o mesmo apresentava, comenta — É, você já tá durando muito aqui nesse plano. Eu que apenas bebo, a alma está presa só por um nó, quem dirá você que não larga esse fumo da boca.

— HAHAI! — Gargalha Pacato fazendo esforço para não derramar em cima de si a concha de fava que ele colocava no pote para Leandro.

Em seguida. Dedé olha para Jay e pede um copo de cachaça e uma porção pequena de criação com jerimum. O funcionário do mês vai cumprir seu papel de garçom, não sem antes mandar Dedé ir para baixa da égua por não ter feito o pedido junto com Leandro, de certo Dormilante achava as canelas do jovem trabalhador muito grossas.

Luiz faz questão de ir pessoalmente servir o carneiro cozido a Dedé. Ficou admirado com o consenso entre suas opiniões sobre os vícios de Genésio. O cozinheiro sai de seu escritório com o prato na mão e sem tempo de esperar chegar até seu cliente, vai perguntando enquanto caminha:

— Dedé na sua opinião, Genésio tá bebendo mais do que tá fumando, ou tá fumando mais do que tá bebendo?

Dedé balança a cabeça para um lado e para o outro fazendo uma cara de quem claramente não está em condições de pensar em uma resposta para uma pergunta com tamanha dificuldade. Porém, pela amizade que tem com o professor, depois de tomar uma dose, faz este esforço e responde — Luiz, todo fumo é muito!

— Tomar uma sucata de lata de cana e depois lavar com cerveja não é indicado pelo SUS, não — Contra argumenta Leandro.

Genésio toma uma dose e tira o gosto acendendo um cigarro enquanto do outro lado do bar acabavam de sentar-se à mesa ao lado da rede, Valeria e Matheus, dois professores que davam aula na universidade situada no município. Ela lecionando Ética e Filosofia, ele, Análise de Sistemas e Programação. Ela enxergando a vida da melhor forma possível, ele, programando cada detalhe de uma vida melhor. Sempre tomando cervejas juntos. Muita cerveja!

Pacato, ao ver que o casal de amigos clientes chegou, os recebe com a mesma pergunta que fez anteriormente. — É o seguinte, a grande dúvida do dia é se Genésio bebe mais do que fuma ou se fuma mais que bebe, o que vocês têm a dizer?

— Primeiramente eu queria deixar claro que não quero me envolver nos vícios de ninguém — Valeria introduz sua resposta — Mas como sou contra a cultura do tabagismo, acredito que meu amigo Genésio fuma mais que bebe.

E você, Matheus? — Pergunta Luiz demostrando ansiedade para saber a opinião de cada um sobre o tema.

— Cara, levando em consideração que uma carteira de cigarro tem aproximadamente 16g e uma lata de cachaça tem 350ml, com densidade de aproximadamente 1, logo tem em torno de 350g de líquido alcoólico. Sabendo que Seu Genésio toma 3 latas de cachaça enquanto fuma 2 carteiras de cigarro. Tenho fortes evidências de que ele bebe mais do que fuma. Mas minha resposta poderia ser diferente caso sua pergunta fosse sobre qual o prejudica mais.

— Vixe Maria! Esse doido sabe até a massa do que bebo! — Genésio salta da Cadeira com espanto.

— Pronto agora vem a opinião mais esperada, a da viúva. Em casa ele chega mais bebo que fedorento a cigarro? — Pergunta Luiz a Jay.

— Olhe, meu querido, eu não durmo com ele. — Jay se defende enquanto colocando as pontas dos dedos de uma mão no peito e a outra na cintura — Contudo, como gosto dele como cliente, percebo que ele está fumando muito, mas gosto que ele venha aqui beber. Termina sua fala com um sorriso no canto da boca.

Genésio aproveita que recebe autorização do garçom para se alcoolizar e anuncia que sua lata de cachaça secou, emendando a conversa com o pedido de outra.

Luiz que já passava voltando para a cozinha, abre o freezer e percebe que não tinha mais da cana que Genésio gosta. Antes de tirar o corpo totalmente de dentro do freezer, Luiz Pacato pede a Jay que vá até o mercadinho de Bigode buscar mais umas seis latas de cachaça prata.

O garçom que já fazia o movimento para subir na moto que o levaria até a mercearia, é interrompido por Genésio. O professor por garantia conferiu também se na sua carteira de cigarros ainda existia alguma unidade do fumo, constatou estar mais vazia que a lata de cachaça, e pediu a Jay que trouxesse mais um maço.

O garçom volta a perna que já ia passando da rabeira da moto, olha para Genésio e fala:

— Eu vou aproveitar pra passar na Moda Chik e garantir meu look preto luto para a procissão de São Sebastião!

É janeiro em Caraúbas, é janeiro na Carranca!