Entre Sem Bater - Grandes Nações
Stanley Kubrick disse:
"... As grandes nações sempre agiram como gangsteres e as pequenas nações como prostitutas..."(1)
As duas maiores obras de Kubrick, ainda hoje, são referências da distopia que vivemos. Desse modo, é compreensível que muitas distopias de suas obras, mesmo com os formatos comerciais de filmes, são reais, atualmente. As mensagens subliminares justificam, por exemplo, sua frase sobre a opressão de muitas nações sobre as outras.
GRANDES NAÇÕES
A princípio, o conceito de grandes nações mudou muito nos últimos séculos. Desde os grandes impérios da antiguidade, até a expansão territorial da Idade Média, a conceituação sofreu transformação radical. Contudo, há muitos séculos, o conceito de "grande" tem sua métrica a partir da opressão do homem pelo homem. Assim sendo, as modernidades e tecnologias atuais não fogem muito da ideia de Kubrick.
Estas grandes sempre se aproveitam das pequenas, com o consentimento destas, quase sempre, para serem grandes.
NAÇÔES LIVRES
Para tratar da questão do domínio das grandes sobre as pequenas nações, e a preconceituosa frase de Kubrick, precisamos retroceder.
Duas frases de Montesquieu, o pensador das repúblicas democráticas da atualidade, merecem destaque.
"Nação é o povo com a consciência, a convicção do destino comum. A comunhão de interesses, que se estabeleceu nela, gera a convicção do destino comum e engendra entre os conacionais uma solidariedade insubstituível, uma lealdade no servir inviável fora da Nação."
"As nações livres são altivas, as outras podem mais facilmente ser inúteis."
MONTESQUIEU
Com toda a certeza, muitos outros pensamentos poderiam reproduzir o conceito de nação, tanto nas grandes nações como nas outras "dispensáveis". Desse modo, as nações livres, mesmo que sejam pequenas do ponto de vista atual, são grandes e altivas. Por outro lado, o próprio povo de cada nação cuida para que seus representantes os tornem submissos ou se prostituem.
No quadro atual global, vemos impérios outrora grandes de joelhos e pequenas nações mostrando-se independentes. Atualmente, as guerras, pelos mais diferentes motivos, determinam a relação entre grandes e pequenos. Consórcios entre nações, para combater interesses supranacionais são, na maioria dos casos, uma forma de prostituição.
Por isso, o conceito de Kubrick sobre grandes nações como gângsteres e as pequenas como prostitutas, é anacrônico.
DUALIDADE DAS NAÇÔES
(Gângsteres e Prostitutas)
A analogia da frase de Kubrick, com conotação pejorativa, deveria nos levar a refletir sobre a dinâmica global ao longo da história. Por outro lado, as afirmações de Montesquieu sugerem uma divisão nítida entre nações que desfrutam de liberdade(2) e aquelas descartáveis.
Desse modo, é preciso questionar a validade e a impropriedade dessas analogias, especialmente considerando o contexto histórico das nações. Ao longo dos séculos, quase todas as nações, enfrentaram a dura realidade da colonização e da escravidão. Rotular as nações como "gângsteres" ou como "prostitutas" é simplificar demais a complexa trama histórica universal.
Gângsteres e prostitutas lutam por motivos diferentes, e os povos das nações que sofrem opressão não merecem a analogia de Kubrick. Certamente, cada um destes povos demonstraram algum tipo de resistência e luta por autonomia.
HISTÓRIA
Historicamente, muitas nações sofreram subjugo e exploração pelas grandes nações colonizadoras. Estas nações, como gângsteres do Século XXI, não hesitaram em usar a força bruta para impor seu domínio sobre terras distantes. Analogamente, faraós, imperadores, bárbaros e outros tantos agiram do mesmo modo, para oprimir e dominar.
Decerto, Kubrick deu ênfase aos gângsteres por querer transmitir algo mais contemporâneo e em alinhamento com seu trabalho disruptivo.
Por outro lado, os efeitos devastadores da colonização persistem até hoje e poderiam ter indicações claras nas produções de Kubrick. A realidade de barbaridades cresceu e manifesta-se nas enormes desigualdades(2) econômicas, sociais e políticas.
Desse modo, a analogia de "gângsteres" para descrever as grandes nações pode, de fato, encontrar respaldo em episódios cruéis da história. Inquestionavelmente, episódios nos quais o poder militar foi o meio de conquista e exploração é uma mancha que permanece.
PEQUENAS NAÇÕES
A nódoa que mancha a história mundial acirra-se com as guerras desproporcionais como as que ocorrem na Eurásia e Oriente Médio. Essas guerras, na pauta da mídia, certamente, não são os únicos conflitos que a frase de Kubrick pode ter acolhimento. Mas, infelizmente, a mídia tem lá seus motivos para mostrar somente aquilo que lhe interessa.
As pequenas nações são as vítimas preferidas para a manipulação de massas, e alguns pensadores descobriram isso.
Assim sendo, comparar as pequenas nações a "prostitutas" é profundamente impróprio e desrespeitoso. Essa expressão carrega consigo estigmas imprecisos e injustos na direção de comunidades inteiras. Essas comunidades, sem dúvida, são vítimas da violência e da coerção, inclusive de seus próprios representantes políticos.
As nações "pequenas", frequentemente, enfrentaram uma luta hercúlea para manter sua identidade cultural, autonomia política e dignidade humana. É pública e notória a avassaladora pressão das grandes nações e, na maioria dos casos, verdadeiras potências bélicas.
Olhar para a história é entender que muitas dessas nações, longe de se submeterem passivamente, resistem bravamente à dominação estrangeira. A resistência cultural, os movimentos de independência e as lutas por autodeterminação marcaram a trajetória de muitas delas. São vários os exemplos de "pequenas" nações que não se renderam à condição de "prostitutas", e buscam reaver sua soberania e liberdade.
AMÉRICA LIVRE
Atualmente, os brasileiros podem se inspirar no próprio exemplo e acompanhar o périplo que os argentinos terão. Curiosamente, a China, que em tempos modernos nunca se apresentou como um gângster, está na pauta de Brasil e Argentina. A maior economia do planeta tem tem dinheiro e não se apresenta em nenhuma guerra fora de seu escopo histórico. O Brasil rendeu-se como uma prostituta barata ao abandonar a China por um período. A Argentina, ignorando a experiência brasileira, optou por romper com a China e isolar-se do mundo. O preço que o Brasil pagou poderia ser muito caro, por outro lado, os argentinos preferem o all-in.
Ainda a título de contextualização, no continente americano temos o maior país colonizador do Século XX, por meio da força e das armas. Os EUA, sempre através da métodos dignos de seus gângsteres, impôs a subserviência a diversas nações. Umas aceitarão ser servis, na linha contrária das nações livres de Montesquieu. Outras lutam com alguma dignidade. Os casos de Cuba, Venezuela, Panamá, e de vários países da América Central beiram o absurdo.
Nações como o Haiti, que contou com revolucionários da estirpe de Toussaint Louverture fazem parte dos mais prostituídos do planeta. Até nações como Porto Rico não sabem qual a sua identidade por não entenderem a colonização mental que sofrem. Em suma, a ideia de Montesquieu, mesmo com a "República" que ele idealizou em muitos países, é igual lei no Brasil, às vezes não pega.
NAÇÕES LIVRES
Quando Montesquieu sugere que "as nações livres são altivas, as outras podem mais facilmente ser inúteis", ele trata da falta de opção da prostituição.
A teoria de que a altivez e soberania das nações acarretam uma liberdade é, sem dúvida, questionável. Por isso, é fundamental evitar a armadilha de generalizações, muito comum nestes tempos modernos. A pretensa liberdade de uma nação não a isenta de responsabilidades éticas e sociais internas e externas.
Muitas nações, enquanto desfrutam de liberdade, podem perpetuar sistemas econômicos e sociais injustos. Desta forma, estariam contribuindo para a marginalização e exploração de nações menos favorecidas. Nações como Inglaterra, Espanha, Portugal, Bélgica e Holanda enriqueceram com trabalho escravo(3) e colonização. Os gângsteres da Idade Média atuam hoje como grandes nações graças à espoliação histórica que realizaram.
A verdadeira altivez de uma nação deve-se à sua capacidade de promover a justiça social, a cooperação internacional e o respeito aos direitos humanos. A ideia de que as nações livres são automaticamente altivas ignora a necessidade de autorreflexão e responsabilidade. Em contrapartida, muitas nações "pequenas" demonstraram uma resiliência extraordinária em tempos atuais. Desenvolvem, até com um custo para si próprios, estratégias criativas para enfrentar os desafios impostos pela história e construir sociedades mais justas.
DÍVIDA HISTÓRICA
Assim sendo, é imperativo reconhecer que as "grandes", ao longo do tempo, têm uma dívida histórica para com as nações "pequenas". A riqueza que essas grandes potências acumularam é resultante da chibata e da opressão. Populações sob o chicote até se seus próprios conacionais sofreram e agora viram uma história banal, por analogias midiáticas.
A cooperação e o respeito mútuo entre as nações são fundamentais para superar as cicatrizes e construir um futuro mais equitativo. Devemos, outrossim, respeitar a cultura e a realidade de cada povo. Se existem divergências religiosas milenares entre dois povos ou nações, só podemos propor ajudar na pacificação. Qualquer posicionamento a favor deste ou daquele povo, é impróprio e não somos parte do problema.
Ao invés de perpetuar analogias que alimentam estereótipos e preconceitos, é necessário promover o diálogo. Sem dúvida, é necessário reconhecer a diversidade de experiências e aspirações das nações ao redor do mundo, sem intervencionismo.
Em suma, as analogias e frases aqui em questão deveriam nos levar a refletir sobre as complexidades das relações internacionais.
Contudo, deveria nos ensinar a olhar para o nosso próprio umbigo e avaliar se somos livres ou estamos à venda. É essencial, sobretudo, abordar estas questões com sensibilidade e sem polarização. Enfim, o peso da história e o potencial de mudança que reside nas escolhas éticas e colaboração das grandes e pequenas nações.
Kubrick, infelizmente seu humor negro é de péssimo gosto, "Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) O mundo divide-se em grupos, a maioria de interesses econômicos e não políticos e sociais. A polarização "direita x esquerda" ou religiosa, só encobre o que, inquestionavelmente, movimenta a roda da ganância.
(1) "Entre sem bater - Stanley Kubrick - Grandes Nações" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/03/entre-sem-bater-stanley-kubrick-grandes-nacoes/
(2) "Entre sem bater - Mikhail Bakunin - A Liberdade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/10/01/entre-sem-bater-mikhail-bakunin-a-liberdade/
(2) "Entre sem bater - Papa Francisco - Enormes Desigualdades" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/05/09/entre-sem-bater-papa-francisco-enormes-desigualdades/
(3) "Entre sem bater - Makota Valdina - Escravizados" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/20/entre-sem-bater-makota-valdina-escravizados/