Um sonho é um desejo d'alma

Cinderela nunca esqueceria a invasão de Petrônia à Bêntria, sua terra natal. O exército inimigo proibiu o culto à deusa Água e impôs a adoração ao deus Sol. Nesse contexto, seu pai fugiu e começou a usar o sobrenome herdado do avô petroniano.

 

Já sua mãe, não hesitou em abandonar o companheiro, considerando-o um covarde. Fiel até o fim à Água, juntou-se à resistência liderada por Ada, madrinha de sua filha. Fazer parte da guerrilha foi o que a matou, levando sua água embora.

 

Cinderela quis lutar junto dela, porém seus progenitores uniram-se derradeiramente para impedir que arriscasse sua vida numa guerra perdida. Por isso, foi forçada a acompanhar o pai até Petrônia. Razão pela qual comemorou outro aniversário.

 

Ah, mas ela nunca louvou o Sol. Não seria submissa como o pai. Portanto, restava rezar escondida para que a Água guiasse seu povo novamente para a independência e liberdade religiosa. Esse era seu sonho, o desejo de sua alma. Será que suas preces seriam atendidas? Era necessário ter fé no seu sonho que, um dia, seu lindo dia haveria de chegar.

 

Cinderela sentia vergonha da aceitação paterna da dominação petroniana, como se nunca tivesse sido bêntrico. Mas ele sempre respondia às reclamações com discurso pronto:

 

“Sou mestiço. E, por extensão, você também. Então essa cultura nos pertence. Não devemos brigar, pois Sol e Água são uma eterna parceria. Devido ao seu trabalho conjunto, a Mãe Natureza segue firme nos dando o privilégio de viver.”

 

“Talvez você esteja certo. Só que Petrônia não quer harmonia, e sim nos exterminar. Do que adianta estarmos seguros longe da guerra se nossas crenças estão mortas?”, retrucava ela.

 

“Imagine se não houvesse religiões, nada pelo qual morrer ou matar...”, o pai de Cinderela também sonhava.

 

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“Tem certeza de que não quer comparecer à coroação do príncipe Encantado como o novo rei petroniano?”, perguntou seu pai novamente antes de sair.

 

Bem, a alma dela desejava estar lá. Sonhava em encontrar o filho do assassino de sua mãe e ameaçá-lo de morte, como fizeram aos bêntricos. Assim, com a benção da Água, conseguiria parar com a invasão. Sua madrinha Ada ficaria muito orgulhosa.

 

É, em sonhos a vida é calma, pois é só desejar para ter. Infelizmente, tratava-se da realidade e ela não poderia fazer nada daquilo. Portanto, negou com veemência a vontade de ir.

 

Contudo, graças à Água, seu sonho pôde se realizar. Afinal, sua madrinha Ada apareceu na porta de casa tão logo seu pai partiu. Ela trouxe um vestido de baile e uma pistola, além de um carro e a mensagem de que Cinderela era a escolha certa para aquela missão.

 

Ao chegar na festa, viu o príncipe Encantado trajado em homenagem ao Sol. Assim, o deus abençoaria esse próximo monarca. Nesse momento, pela primeira vez, Cinderela sentiu o poder da divindade. Os raios solares pareciam invadir seu corpo, fazendo-o esquentar. Não de um jeito ruim, mas sim aconchegante. Pessoas não faziam fotossíntese, porém ela sentia seu corpo cheio de energia elétrica.

 

Todo esse bom pressentimento se mostrou válido. Pois, depois de ter colocada a coroa sobre sua cabeça, o rei Encantado começou um discurso pela paz. Aliás, era muito parecido com o que o pai de Cinderela falava sobre o Sol e a Água trabalharem em harmonia para a manutenção da vida.

 

Ouviu em primeira mão que as tropas seriam retiradas e a soberania de Bêntria reconhecida. A partir dali, não desejava mais dar um tiro no monarca, mas sim um abraço.

 

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De repente, as doze badaladas do relógio indicando a meia-noite acordaram Cinderela. Óbvio! Tudo aquilo foi um sonho, um desejo de sua alma ao adormecer! Ela tentou se entregar ao sono novamente, mas a angústia de ver seu desejo escorrer por entre os dedos era suficiente para dar-lhe insônia.

 

Quem não tinha presente, como o povo bêntrico, se contentava com o futuro. O problema era que esse futuro não parecia chegar nunca. Por isso, suspirou novamente e se lembrou de ter fé no seu sonho que, um dia, seu lindo dia haveria de chegar.

 

Aproveitou que estava incapaz de pregar os olhos e ligou seu radinho, velho companheiro de suas orações à Água, na estação de notícias 24 horas. Suas orelhas estavam atentas ao jornal, esperando pelas matérias sobre sua madrinha Ada e o grupo “terrorista” que chefiava.

 

Como esperado, transmitiam a cobertura da coroação do príncipe Encantado. Devido ao seu desinteresse pelo tema, a moça bufou. Entretanto, logo teve uma excelente notícia diretamente relacionada a esse evento: sua madrinha Ada estava presente, discutindo os detalhes para um acordo de paz com o novo governante. Talvez esse próximo rei fosse mesmo bom como pressentiu sua alma!

 

Afinal, não importou o mal que atormentou o povo de Bêntria, porque o sonho os contentou e pôde se realizar.