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DO FUNDO DO BAÚ
Nostálgica, atravesso meus pensamentos e revejo inúmeras passagens da minha existência, escritas e guardadas no âmago da minha memória. Numa folha em branco, rascunho lembranças, desenho paisagens e dou cores à minha história. A primeira recordação que me vem à mente é o rústico carrinho de madeira crua com quatro pequenas rodas que serviu para ajudar nos meus primeiros passos cambaleantes, inseguros e medrosos. Numa outra visão, um prato de ágata branco com bordas pretas, trazido pelas mãos da minha mãe, cheio de angu de farinha fina, em que o seu dedo substituía a colher para me alimentar, num ato de amor, carinho e cuidado. Na cozinha, escutava o burburinho animado do batido de louças, me vejo na mesa velha, num pequeno alpendre com peitoril. Minha mãe no fogão à lenha com panelas de barro e de ferro, fogo constantemente aceso, sempre disponível. Olho o tacho de ferro, o café em grãos, o açúcar e a colher de pau para a sua torrefação. Logo no cantinho, um pilão de madeira fosca com sua pesada e conhecida mão e, posteriormente, o moinho e a peneira com cerdas de arame para peneirar o pó. Logo sinto o aroma do delicioso café donzelo, o cheiro forte atraía a vizinhança. No quintal, o cacimbão descoberto à deriva da sorte, um balde com uma corda para puxar a água salobra para a limpeza de casa e também usada no banho, deixando o cabelo duro e quebradiço. No fundo, encostado no muro, o chiqueiro de porcos para o abate e alimentação da família, carne assada na banha e colocada num latão para ser consumida por vários dias. A banha estocada em garrafas de vidro com a ajuda de um funil. O couro do toucinho salgado e colocado ao sol para o tempero do feijão-de-corda, às vezes já com gorgulhos, retirados na hora da primeira fervura. O torresmo servia de merenda durante a semana, misturado à farofa de farinha de mandioca. Noutro canto, o criatório de galinha para o tradicional almoço dominical e o abastecimento de ovos da casa. Um amontoado de lenha, uma carrada fechada do antigo caminhão, para a venda em retalho. Toda a criançada ajudava no transporte da madeira para o seu devido local. Na sala de jantar, parada, eu gostava de admirar o quadro da Santa Ceia, que permaneceu por anos naquela velha parede. No terraço, o jasmim com flores cheirosas e o pião roxo, dizia-se que servia para tirar mau-olhado. Após o portão do quintal, o pé de ciúmes e na cerca o melão silvestre. E assim, flutuo nas doces lembranças, na correnteza do rio, nas brincadeiras de rua, nas casinhas de boneca, no banho de chuva, nas viagens de trem, nos passeios do campo, no canto dos pássaros e nos meus inesquecíveis bichinhos de estimação. São reminiscências de ontem, vivências de hoje, é a vida que prossegue no compasso do tempo. Saudosa história, vivida, sentida, escrita e poetizada, que fará parte do futuro e de um velho baú de recordações.
Revisão ortográfica:
Humberto Fontinele Lopes
Fortaleza-CE