Corpo costurado e reconstruído.
Há momentos na vida em que fazemos uma retrospectiva dos dias vividos. Analisamos nossos atos, avaliamos nossos conceitos e prioridades. E a qual conclusão chegamos? Bom, isso depende do grau de evolução em que estamos. Existem momentos e acontecimentos que nos pegam desprevenidos, como diz o velho ditado popular: somos pegos de calça curta.
Posso dizer que alguns eventos de nossa jornada são obrigatórios para nossa evolução pessoal; que precisamos passar por determinado acontecimento. Alguns eventos nos sacodem, nos desconstroem do que somos, para mais a frente nos reconstruir. Estamos numa caminhada evolutiva, uma caminhada para nos melhorar como seres humanos, nos melhorar como pessoas.
O ser humano é muito esquisito, não é mesmo?
Nós sabemos que nosso tempo na Terra é contado, que temos prazo de validade, porém, vivemos como se a vida fosse infinita. Como se tivéssemos todo o tempo do mundo para fazer tudo, realizar todos os nossos sonhos. Sempre deixando para amanhã ou para a semana que vem. ‘’Talvez ano que vem eu faça uma pós’’, ou ‘’talvez mês que vem eu faça uma viagem’’. "Pensando bem, vou fazer uma visita para meu querido amigo que mora em outra cidade só no ano que vem, assim terei mais tempo para aproveitar, porque estarei de férias”.
Realmente somos tolos, inconsequentes e imaturos, não importa a idade em que estamos. Porque nossa vida é frágil, basta uma vírgula em nossa trajetória ínfima, para constatarmos que nosso tempo é curto e precisamos aproveitar a vida e as pessoas como se não houvesse amanhã, como diz a música.
Estamos constantemente em busca da felicidade, de realização, de objetivos em nossa tão curta vida. Em busca do corpo perfeito, da casa dos sonhos, do carro do ano, de qualquer coisa que nos traga um momento de felicidade. Mas já parou para pensar o que é felicidade?
O que te traz felicidade? Será que precisamos de algo ou alguém que nos traga a tão sonhada felicidade? Será que não basta acordar e dizer para si mesmo: Hoje eu serei feliz porque eu mereço.
Não, não basta, o ser humano precisa realizar alguma façanha para se sentir feliz e realizado.
No entanto, para se sentir o pior dos seres, não necessita de muito esforço; um tropeção, alguém dizer que você é feio, ou que seu cabelo curto não combina com seu rosto; ou pior: o resultado de um exame.
Você pensa: estou fora de risco de qualquer doença. Porque sou saudável, porque minha mãe disse que tenho o corpo fechado para doenças.
‘’Ela não fica doente, nunca. Pode colocá-la junto a qualquer pessoa com doenças infecciosas que ela não pegará. Desde criança é assim com ela.’’
Cresci ouvindo minha mãe dizer essa asneira; mesmo sabendo que não havia nenhum fato que comprovasse isso, meu subconsciente estava condicionado a esse atestado de minha mãe. Não ficaria doente, porque meu corpo estava fechado.
Fechado? Doce e amarga ilusão, a minha.
Amo o número 6, não me pergunte o motivo. Nasci no dia 16 do ano 76, e minhas filhas nasceram uma no dia 16 e outra no dia 26. Por que estou falando isso? Porque no ano de 2016, depois de realizar um exame de rotina, descobri um nódulo no seio. Não sentia nada, nenhuma dor, nenhuma mudança no formato do seio; nada, nada. Afinal meu corpo era fechado, lembra?
Nunca imaginei que um nódulo de 1,7 cm pudesse fazer tanto estrago no corpo e na mente de um ser humano. Exames e mais exames para saber a extensão do perigo e do poder de invasão desse ‘’bichinho’’ que furou o bloqueio de meu corpo fechado. E meu corpo, que era fechado, foi exposto, revirado do avesso.
Se existisse um exame que pudesse ver a alma, com certeza faria também.
Duas palavras ficaram gravadas em minha mente: TRIPLO NEGATIVO. De todas as etapas da minha nova vida e dos próximos nove meses, só lembrava do (- - - negativo).
Um pedacinho de mim que crescia de forma desordenada, com um poder devastador, teria que ser removido com urgência.
Senti, da pior forma possível, que de fechado meu corpo não tinha nada. Não bastava retirar as células que cresciam em meu corpo desordenadamente. Teria que fazer um tratamento. Já imaginou? Três bolsas de um líquido que parecia soro. Tiraram de mim tudo que pensei ser apenas meu. Descobri que eu não sou nada, que meu poder era inferior ao que supunha. Mas descobri que o poder que eu adquiri foi imensamente maior do que imaginei poder alcançar.
Durante essa nova fase, tive ajuda de muitas pessoas, de amigos; encontrei médicos maravilhosos, enfermeiras que se tornaram amigas, uma infinidade de profissionais que passaram por minha trajetória, que fizeram minha tempestade diminuir a intensidade.
A beleza que eu pensei ter sumiu como um sopro, o sabor das coisas desapareceu literalmente. O perfume se tornou um veneno para meus sentidos. Dormir passou a ser um sacrifício; caminhar passou a ser uma tarefa quase impossível. Comer? Quem precisa comer? Qual a finalidade de cílios nos olhos? Para que servem os cabelos? O que é essa tal de imunidade? Não a vemos, então, por que ela se tornou tão importante? A água, ela realmente não tem sabor?
No meio desse turbilhão de coisas e acontecimentos que a vida nos reserva, ou que a vida me reservou, recebi um presente: um amigo do peito. Esse amigo me acompanhou durante 6 anos (olha o número aí). O cateter Portocath — um pequeno objeto que se tornou, para mim, o símbolo da cura. Uma muleta que usei durante minha jornada de aceitação.
Tirá-lo, foi mais difícil do que imaginei. Queria ele ali, no meu peito, porque se o meu inimigo voltasse, ele, o cateter, estaria pronto para ser usado em combate. Retirá-lo, foi como se estivesse tirando um pedaço de mim.
A cada quarenta dias tinha que fazer a higienização do dispositivo e retirá-lo, quebraria este vínculo com as meninas da clínica. “Abandonaria” as pessoas que salvaram minha vida.
Aprender a viver sem a muleta, sem meu amigo, foi uma etapa de aceitação. Estou curada. Meu corpo voltou a se fechar novamente. Porém sabendo que, de forma consciente, esse “fechar o corpo’’ não chega nem perto de não ficar doente.
Meu corpo está sendo “costurado” e reconstruído fio a fio para uma nova vida que ganhei no ano de 2016.
Revisão e imagem de Neyla Castor
Obrigada ao amigo professor Manoel pela revisão e sugestões.