Entre Sem Bater - A Função do Cartunista

Angeli disse:

"... a função do cartunista é alfinetar, levantar discussão..."(1)

Angeli ( no Twitter é @Angeli_ com "underscore" e não como um bando de idiotas reproduz link para uma gringa ) é uma cara sagaz. Ao ficar equidistante do poder, pode exercer sua opinião com extrema qualidade. Seus personagens são mais ou menos famosos em função da realidade e identificação de cada admirador. Eu, por exemplo, tive dificuldades em escolher quais cartuns colocaria neste texto.

FUNÇÃO DO CARTUNISTA

A escolha da frase-chave do Angeli foi até fácil, entretanto, escolher quais os personagens estariam representados na função do cartunista, foi mais difícil. Afinal, conciliar o momento pelo qual passa o país, resumindo em poucos personagens e um cartum de cada um, é impossível.

Por outro lado, falar, ou melhor, reproduzir a ideia do cartunista, é mais prazeroso e fácil. Nesta data de mais um aniversário do artista e 40 anos de um de seus personagens, fica aqui uma singela homenagem. Embora eu seja um admirador anônimo, daqueles que assinavam a  Folha de São Paulo, é muito bom fazer parte desta história.

Angeli disse sobre o humor "contra" ou a "favor", e assim sendo, temos a certeza: um cartunista tem a qualidade de compreender as coisas(2). Os ótimos cartunistas são assim, conseguem num desenho, transformá-lo em mil palavras, sem meias-palavras.

BOB CUSPE

Bob Cuspe é, certamente, uma figura ácida e irreverente que não hesitou em expor, sempre, os aspectos sombrios da sociedade. Sua falta de modos e seu visual inconfundível, apontava, sem dúvida, os holofotes para os absurdos e contradições da vida cotidiana.

Um de seus alvos favoritos? A televisão e seu impacto na sociedade. É provável que, Bob Cuspe seria um adversário implacável para estes influencers de merda.

Através de sua personalidade, Bob Cuspe expôs como a televisão se tornou uma ferramenta de manipulação e alienação das massas. Em suas tirinhas, Angeli retrata as pessoas hipnotizadas diante da tela da TV, com olhos vidrados e bocas abertas. Esse retrato satírico foi  uma crítica ao poder persuasivo da televisão, que as redes sociais agora detém. Esta alienação desencoraja o pensamento crítico e promove uma cultura de consumo e servidão voluntária(3).

SENSACIONALISMO e DESINFORMAÇÃO

Além disso, Bob Cuspe utilizou seu humor cáustico para evidenciar como a televisão pode ser uma fonte de desinformação. Ele ironicamente poderia retratar programas sensacionalistas, que privilegiam a audiência em detrimento da veracidade das informações. Essa sátira expõe a maneira como a televisão ( e porque não a Internet) pode distorcer a realidade e moldar a opinião pública. O resultado está aí: uma grande parcela sociedade mal informada e influenciável.

A crítica de Bob Cuspe não se limitou apenas ao conteúdo da televisão, mas também se estende à sua influência nas relações interpessoais. Em suas críticas, ele destaca que as obsessões levam ao isolamento social. Se transportarmos para as redes sociais, cada pessoa de uma grande família, imersa em seu próprio mundo virtual, sob o mesmo teto.

Bob Cuspe ainda serve como um espelho crítico que nos convida a refletir sobre o papel da televisão e Internet em nossas vidas. Sua mordacidade sobre a influência da TV e aplicável à Internet, é lapidar. Assim sendo, Bob Cuspe é ator fundamental na função do cartunista em informar, sem sensacionalismo.

A importância de mantermos uma postura crítica em relação àquilo que "consumimos" nas telas minúsculas é vital. Em um mundo sob domínio da mídia, Bob Cuspe nos lembra da necessidade de permanecermos vigilantes e questionadores diante do que recebemos.

MEIA OITO

No coração da contracultura e efervescência revolucionária da década de 1960, surgiu um personagem icônico: Meia Oito. Com sua aparência desgrenhada, barba rebelde e olhar fervoroso, Meia Oito personifica, sem dúvida, a chama de uma revolução socialista.

Meia Oito deve carregar consigo um crachá imaginário de "eterno revolucionário", mesmo quando o mundo e o Brasil parecem retroceder. Aqueles cartazes envelhecidos agora transformaram-se em folhetos resultantes de inteligência artificial. Contudo, a necessidade de uma transformação social profunda e a queda iminente do capitalismo opressor, permanece.

Ao observar o cenário atual, Meia Oito veria com seus olhos idealistas uma sociedade em que as desigualdades persistem. O poder(4) continua nas mãos de poucos e a classe trabalhadora padece no  inferno. Para ele, o espírito de 1968 morreu, mesmo que estivesse vivo, pois a revolução que começou naquela época ainda está para acontecer. Suas palavras podem parecer nostálgicas para alguns, mas para ele, são uma chamada constante à reflexão-ação.

GERAÇÕES PERDIDAS

Enquanto o tempo avança e as gerações mudam, Meia Oito permanece como um lembrete ambulante dos ideais dos verdadeiros rebeldes. A luta por um mundo mais justo e igualitário é atemporal e, surpreendentemente, mais necessária do que nunca. Ainda que o contexto seja outro, é possível um espírito revolucionário eterno, que aguarda a semente germinar, quando menos se espera.

Em um mundo de pessoas cínicas e passivas, Meia Oito nos convida a lembrar dos sonhos daqueles que desafiaram o status quo. Sua crença obstinada na revolução socialista iminente é, em suma, uma declaração de que a luta por um mundo melhor deve perseverar.

OS SKROTINHOS

Os Skrotinhos tornaram-se ícones da crítica social irreverente e, atualmente, com a classificação de politicamente incorreta. Esses personagens em forma de testículos, por mais estranha que possa parecer, atuam como um espelho satírico da sociedade. Assim sendo, podem expor as contradições e hipocrisias de maneira direta e provocativa.

Eles são os mestres na arte de cortar os tabus e as convenções sociais, o que os comediantes stand up de hoje tentam engatinhar. Com toda a certeza, ao desafiarem a forma como a sociedade lida com temas sensíveis, eles eram imbatíveis. O caso de uso de drogas recreativas e a permissividade em relação ao álcool, por exemplo, é bem típico. Ao colocar esses assuntos sob uma lente de humor ácido, eles provocam alguma reflexão. Com toda a certeza, eles defendem a Maconhabrás(5), a partir da inconsistência de muitas atitudes e valores culturais de nossa sociedade. Seriam até alvo de contratação para consultoria do Ministro da Fazenda e a tentativa de "zerar o déficit".

Um dos temas mais recorrentes nas abordagens dos Skrotinhos é a disparidade entre a postura da sociedade perante a maconha e o álcool. Embora a maconha muitas vezes tenha um viés de ameaça, com prejuízos até psíquicos, o álcool é que tem aceitação ampla. Por isso, apesar dos efeitos do álcool à saúde e das consequências sociais do consumo excessivo, a permissividade reina.

HIPOCRISIA

Enfim, por meio de seu sarcasmo, eles questionam o porquê de uma substância ser "o demo" enquanto outra é éden na Terra. Ao fazer isso, Os Skrotinhos expõem uma hipocrisia "natural" em muitas das nossas políticas e normas sociais.

A força d´Os Skrotinhos reside na maneira como eles conseguem criar empatia popular mesmo em meio a sua irreverência. Eles nos fazem rir, mesmo quando estamos confrontando nossas próprias opiniões e preconceitos. Ao fazê-lo, abrem espaço para diálogos e reflexões sobre a sociedade em que vivemos. Inquestionavelmente, Os Skrotinhos não são adeptos da hipocrisia e, desse modo, são um canal ótimo para ajudar na função do cartunista.

Em síntese, "Os Skrotinhos" são mais do que apenas cartuns - eles são uma voz desafiadora, que estimula a conscientização e questiona a hipocrisia social. Em um mundo onde evitamos as verdades desconfortáveis, eles nos lembram que a crítica ácida é um meio eficaz de incitar a mudança.

RÊ BORDOSA

Em primeiro lugar, Rê Bordosa era, ou ainda é, muito mais do que aparenta à primeira vista, quem vê cara não vê coração. Enquanto suas histórias frequentemente giravam em torno de situações como o álcool e sua vida boêmia, ainda é atual. Rê, se existe nos dias de hoje, seria uma figura à frente de seu tempo, liderando movimentos em prol da liberdade individual. E, certamente, questionando dogmas arraigados na sociedade hipócrita e cínica.

Com sua sua irreverência, Rê Bordosa se tornaria uma influenciadora ou blogueira destemida. Utilizaria suas plataformas e redes sociais para criticar dogmas e costumes, especialmente aqueles associados à religião. Desde que mantivesse sua abordagem franca não apenas atrairia um grande número de seguidores, mas ditaria novas normas. Desafiaria, inclusive, as normas sociais que muitas vezes restringem a expressão individual.

Nos dias atuais, Rê Bordosa estaria na vanguarda da discussão sobre liberdade de pensamento, igualdade de gênero, racismo e outros temas. Suas postagens provocativas e perspicazes convidariam os seguidores a questionar até as próprias plataformas e redes sociais.

AÇÔES INUMANAS

Ajudaria, sobretudo, numa compreensão mais ampla do mundo e das maluquices das ações humanas(6) contraditórias e inconsequentes. Seu senso de humor refinado é uma arma poderosa contra o conservadorismo inflexível, desmantelando tabus com sarcasmo inteligente.

Ao abordar tópicos sensíveis, como religião, Rê Bordosa não hesitaria em apontar contradições e hipocrisias, de forma construtiva. Ela inspiraria debates saudáveis (que inexistem !), encorajando as pessoas a explorar diferentes perspectivas. Seu destemor e compromisso com a verdade é inspiração para aqueles que buscam o desafio.

Em um mundo de valorização da liberdade individual e busca incessante por melhorias é incessante, Rê Bordosa, se tornaria uma líder de pensamentos. Desse modo, moldaria, positivamente, a maneira como as pessoas enxergam o mundo ao seu redor. Seria a catalisadora para desbravar novos caminhos e novas perspectivas para a conscientização e a mudança social.

WOOD & STOCK

Em um canto, é provável que não tão distante, da mente criativa de Angeli, nasceu Wood e Stock. Certamente, uma dupla que personifica o non sense e a desconexão com a realidade de uma forma única e envolvente. Com uma sagacidade peculiar, eles cativaram fãs ao longo do tempo, com suas aventuras entre o delírio e o confronto com a realidade.

Wood, com seu cabelo desgrenhado e olhos perdidos em desvios constantes, personifica as metamorfoses ambulantes. Ele, de fato, é uma larva que nunca se torna borboleta, mergulhando em sonhos que raramente encontram ressonância com o mundo real. Destarte, seria mais do que perfeito para o mundo digital das redes sociais, repletas de perfis e opiniões falsas(7).

Enquanto isso, Stock, com seu semblante sempre de espanto e uma eterna descontração, é como uma cigarra que nunca vai parar de cantar (#SQN). Stock representa aqueles que persistem em sua busca por momentos de euforia e alegria, distanciando-se da realidade e da função do cartunista.

DISTOPIA

As histórias desses personagens são uma jornada hilariante, mas ao mesmo tempo reflexiva, através das nuances da natureza humana. Desse modo, suas experiências nos levam a refletir sobre como frequentemente caímos nas armadilhas de nossa própria ilusão. É provável que a busca por evitar o confronto com as verdades à nossa frente seja uma saída honrosa e distópica.

No entanto, de tempos em tempos, Wood e Stock retornam à realidade. Assim como nós, por imprevistos, como, por exemplo, ao recebermos um choque elétrico, nos faz lembrar que somos humanos. Esses momentos de "cair na real" são um lembrete irônico e bem-humorado de que todos nós estamos dentro de uma realidade inexorável.

Em suma, Wood e Stock, com sua narrativa excêntrica e sutil, nos lembram da importância de equilibrar ilusão com a realidade. De fazermos nossa própria metamorfose, enquanto reconhecemos nossa condição presente. Aproveitar, com toda a certeza, a euforia da vida sem perder de vista a decisiva jornada é necessário.

PRECISAMOS DE ALIMENTO

Em suma, a função do cartunista é simplesmente, com muito trabalho, incitar e provocar reflexões e discussão. E, surpreendentemente, deve evitar colocar legendas e explicações. Afinal, se o povo tem preguiça mental(8) e não gosta de ler, nada melhor do que uma tirinha com menos de 280 caracteres.

Precisamos, urgentemente, de dar vida longa digital ao Bob Cuspe, ao Meia Oito, aos Os Skrotinhos, à Rê Bordosa, a Wood & Stock e tantos outros.

Vida longa e obrigado Angeli, por exercer a função do cartunista com maestria !

P. S.

Normalmente, não dedico textos da série "Entre sem Bater" a nenhum indivíduo ou grupos, dedico àqueles que compreendem as coisas. Este texto é uma homenagem explícita a um grande artista (Angeli), e minha homenagem estende-se a outros grandes artistas, a saber:

* Camaleão (Cartunista) - @camaleaoart

* Duke (Chargista) - @dukechargista

* Eddie (Grafiteiro) - @eddied.oliveira

Certamente, muitos outros artistas das curvas e retas merecem homenagens, são artistas do traços, desde o bico de pena. Exercem com muita competência, cada um ao seu modo, a função do cartunista.

(1) "Entre sem bater - Angeli - A Função do Cartunista" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/08/31/entre-sem-bater-angeli-a-funcao-do-cartunista/

(2) "Entre sem bater - Upton Sinclair - Compreender as Coisas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/08/30/enter-sem-bater-upton-sinclair-compreender-as-coisas/

(3) "Servidão Voluntária - Bolsominions, Cruzeirenses e o Poder" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2021/01/20/servidao-voluntaria-bolsominions-cruzeirenses-e-o-poder/

(4) "Entre sem bater - Augusto Cury - O Poder" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/05/02/entre-sem-bater-augusto-cury-o-poder/

(5) "Maconhabrás - A Redenção Tupiniquim" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2019/10/17/maconhabras-a-redencao-tupiniquim/

(6) "Entre sem bater - Baruch de Spinoza - Ações Humanas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/08/29/entre-sem-bater-baruch-de-spinoza-acoes-humanas/

(7) "Entre sem bater - Joseph de Maistre - Opiniões Falsas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/07/30/entre-sem-bater-joseph-de-maistre-opinioes-falsas/

(8) "Entre sem bater - Liz Hurley - Preguiça Mental" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/10/entre-sem-bater-liz-hurley-preguica-mental/