O morto sem óculos
Os dois chegam ao velório. Com ar compungido, aproximam-se do caixão. Nota-se certo constrangimento.
- Ele tá diferente, não?
- Até demais. Certeza que é o mesmo morto?
- Geraldo, está escrito na entrada.
- Mas não se parece com o Geraldo.
- É, acho que está faltando alguma coisa.
- Os óculos!
- Óculos?
- Sim, o Geraldo sempre usou óculos.
- É verdade, e agora está sem.
- Não deviam ter tirado.
- Mas para que o morto precisa de óculos?
- O Geraldo era tão míope que, sem óculos, não veria nem a luz.
- Lá isso é verdade...
- Se é pra homenagear o Geraldo, precisavam deixar os óculos.
- E aí enterram os óculos junto?
- Bom, se quiserem, podem colocar numa caixinha.
- Não sei... Provavelmente, ele tirava os óculos para dormir.
- Não é a mesma coisa, aqui ele está sendo exibido.
- Mas...
- Sem os óculos, parece que estão exibindo outra pessoa.
- Questão de costume mesmo.
- Eu vou deixar isso no meu testamento.
- Deixar o quê, criatura?
- Que me deixem de óculos no velório.
- Você nem é tão míope quanto o Geraldo.
- E o estilo? Tenho uma imagem a zelar, mesmo depois de morto.
- Tem graça...
- Falta de respeito com a imagem do morto.
- Prometo que avisarei sobre os óculos, se você morrer antes.
- Obrigado. Tirar os óculos do morto míope... Onde já se viu?
- Deixa para lá. Vamos indo, já deu para ver o Geraldo, né?
- Sim. Com meus próprios óculos que a terra há de comer.