O desejo do que ainda não veio
Faltam apenas dois dias para começarmos a contar os desejados 365, que se chamarão de 2024. Isso acontecerá sucessivamente desde que ultrapassemos as passagens dos anos seguintes. Não há mistério em contarmos as frações do tempo, mesmo que o tempo seja, ao nosso conhecimento, um enigma. Para entendermos o que significa o tempo, essa categoria aristotélica, precisamos de tempo e de intuição metafísica, a se começar pelo exercício de tentar intuir ontologicamente o ser.
Estaremos em algum lugar, no dia 31 deste mês, também contando que faltam dois minutos para se acabar o último dia de 2023. Contando e cantando a modinha de sempre: “adeus ano velho”... Soltados foguetões e fogos de artifício, também outrora inventados pelos chineses, aparece-nos a sensação de que começamos a viver um tempo novo, cheio de ânimo e esperanças, de felizes perspectivas. Talvez, se não formos os mesmíssimos dos desânimos e frustrações de 2023.
Santo Agostinho filosofou bem ao dizer que não é o tempo que faz o homem, mas é o homem que faz o tempo... Enfim, somos nós que fazemos o valor dos instantes, na estrada da vida, até a aproximação inevitável da morte, quando tudo deixamos, especialmente nossas preocupações sobre o passar do tempo e sobretudo a de contar suas horas, dias, semanas e meses e anos. Os mortos se libertam do tempo... Na passagem de um ano para outro, se somos os mesmos, sem algum espírito de renovação, os já vivenciados desânimos acompanharão os ânimos já no início do novo tempo. Novo deve ser o nosso desejo.
Enquanto um tempo que ainda não veio, 2024 é futuro, é uma parcela do tempo que ainda não nos pertence, vazio das nossas ações ou que ainda não aconteceu. Seriam ações consequentes de desejos, de ações querentes (infectum), mas ainda não queridas (perfectum). Conclui-se que o futuro ou o devir é substancialmente o tempo do desejo, do que queremos através da nossa “vontade querente” , isto é, vontade ainda não realizada. Isso muito se compreende na obra L’Action, de Maurice Blondel.
De certo modo, tudo que fazemos é concebido, anteriormente, pelo desejo de fazê-lo, e logo o desejo se torna realidade. Por enquanto, 2024 é tempo do sonho e do desejo, e, consequentemente, 2023 transformou-se em tempo da lembrança, objeto para a memória resgatar as ações que já foram vividas. Inútil é desejar reviver ou retornar ao passado. Desejar o passado proporciona angústia, ou a atualmente “crise existencial”, que se apodera de nós, só servindo para nos afligir. Convidativa é a circunstância de desejarmos ad futurum, propícia à entrada do Ano Novo, evitando-se o sofrimento de tal angústia.
Quanto a 2023, que nos venha a nostalgia, saudade daquilo de bom que já foi vivido. E em 2024, suportemos outro sofrer, o sofrimento pelas coisas e fatos, que, queridos, ainda não vieram, ou o desejo do que ainda não veio. Se aceitamos Protágoras dizer que “o homem é a medida de todas as coisas”, aceite-se também que nós somos a medida do tempo. Com certeza, somos nós que o medimos...