UM OUTRO OLHAR SOBRE A ROCINHA

Minha mãe tinha um irmão, tio Cid que morava na Rocinha, e não sei se por preconceito, ou outra desculpa qualquer, tanto meus irmãos, como meu pai nem pensavam na possibilidade de uma visita a sua família.

Para variar, eu era sempre escalado como acompanhante, ela sentia saudade do irmão mais velho, e de alguma forma também gostava de ajudar sua família que contava com onze filhos, morando na Rocinha, dificilmente teria uma qualidade de vida razoável.

Agora uma coisa não posso negar a animação de uma família com treze componentes era diferente de tudo que conheci até então. Nossa chegada causava certa euforia, pois minha mãe invariavelmente trazia bolsas com conteúdo valioso e também surpresas, às vezes muitas surpresas.

Uma cesta básica já era praxe, porém, pelo menos para as crianças e para tia Jurema surpresas eram roupas, que vinham embaladas individualmente como presentes, que ela precocemente aposentava de nossos armários e o mais importante algum eletrodoméstico usado, mas em perfeito estado, ela tinha mania de substituir constantemente estes equipamentos.

Como ninguém tinha telefone na época, e minha mãe cumpria expediente prolongado, essas visitas invariavelmente aconteciam nas manhãs de domingo. Mesmo morando relativamente perto, esse simples deslocamento do Jardim Botânico para a Rocinha demandava um tempo adicional, pois além da baixa frequência dos ônibus no domingo, ainda exigia uma conexão no bairro da Gávea.

Naquela época você podia acessar a Rocinha por dois itinerários distintos, o mais concorrido subia pela Estrada da Gávea pelo bairro homônimo. O outro cruzava o Leblon e pegava a Avenida Niemayer. Descíamos na confluência das duas principais vias de São Conrado, a Niemayer com a Estrada da Gávea. Esse trajeto pela Niemayer muito me assustava, pois a via não tinha qualquer proteção lateral em relação ao costão rochoso e o mar, e mesmo assim os lotações andavam em perigosa velocidade, principalmente quando se tem consciência que em muitas curvas o espaço não permitia que dois veículos em sentidos opostos se cruzassem.

Para chegar ao barraco da família Carvalho, bastava subir algo como 200 metros na Estrada da Gávea e entrar à direita numa rua larga sem pavimento que terminava exatamente onde foram cavadas as galerias do túnel Zuzu Angel. Essa rua contava com poucas construções e ainda bem espaçadas umas das outras.

A casa que eles moravam era grande, tinha três quartos, um menor para o casal, e os outros dois grandes onde havia a separação de meninos e meninas. A casa rústica, fora toda construída em madeira e não dispunha de forro, o que gerava certo desconforto térmico, tanto nos dias quentes de verão, como nas noites frias do inverno, isso para não falar do vento que gerava um som lá um pouco assustador.

Em anexo a casa, uma área coberta onde meu tio fazia bico como mecânico. Com o passar dos anos foram se definindo as primeiras profissões para os rapazes, todas ligadas à manutenção de veículos. Com isso, foram sendo diversificados os serviços, que agora incluíam além de mecânica, eletricista, lanternagem e pintura de automóveis. Como o terreno era grande, além do espaço para estacionamento dos veículos, contava ainda com uma baliza e um meio campo de futebol, onde jogávamos bola.

Uma dessas visitas coincidiu com meu período de férias escolares e meus primos insistiram para que eu permanecesse por uma semana com eles. Minha mãe, a contragosto acabou permitindo minha estada por lá. Ao final da tarde fui levá-la ao ponto de ônibus e ela não escondia sua preocupação, dada a precariedade do cotidiano da família. Para tranqüilizá-la falei que tinha dinheiro, e se alguma coisa desse errado eu voltava para casa imediatamente. Acho que ela se tranquilizou com minha atitude e embarcou serena no primeiro lotação.

Sempre tive certa curiosidade de conhecer outras realidades, não me refiro especificamente à família, mas a favela propriamente dita. Naquele tempo a favela ainda era tranquila e boa parte das pessoas se saudava com alegria, acho que isso explicava bem a sensação de pertencimento. O comércio local se concentrava na parte alta da Estrada da Gávea. Na parte plana, a exceção do Largo do boiadeiro, a ocupação era ainda dispersa e prevalecia mais como área de lazer, principalmente para a prática do esporte bretão.

Toda compra de mercadorias exigia uma longa caminhada, passando pela parte plana até as áreas mais íngremes, que já contava com densidade construtiva alta, moradias pequenas e circulação prejudicada pela declividade, muitas escadas e um emaranhado de estreitos becos, alguns sem saída. Lembro que era um alívio chegar à Estrada da Gávea, onde existia um parcelamento da terra com características quase formais.

A sujeira já fazia parte do cotidiano dos moradores, pois o lixo podia ser encontrado em qualquer caminho, porcos e galinhas principalmente, faziam sua festa enquanto não eram abatidos para venda no Largo do boiadeiro, que com suas mambembes barraquinhas vendiam carne fresca a clientela por preços bem abaixo do mercado formal.

Nessa semana fizemos de tudo um pouco. Assistimos a partidas de futebol, fiquei impressionado com o bom nível técnico dos atletas. Fizemos vários tours pela parte alta da favela onde descortinava uma paisagem idílica, pois o bairro de São Conrado tinha ocupação rarefeita tanto ao longo da Avenida Niemayer, como da parte plana da Estrada da Gávea.

Lá de cima do morro podia se apreciar um espetacular anfiteatro natural. Na parte alta o verde da Mata Atlântica, na plana gramíneas verde mais clara do Gávea Golf Club envolto por vegetação rasteira que predomina em solo arenoso, além de algumas dunas. Em seguida alvas areias, um profundo mar azul que lá no horizonte se fundia com o céu.

Já em termos construtivos, predominava impávida a Paróquia de São Conrado com seu branco luminoso em contraste com o fundo verde dessa parte do Maciço da Tijuca.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 26/12/2023
Código do texto: T7962302
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