A ética do pum conjugal
Estava eu conversando com um grupo de amigos e o assunto foi parar em peido sabe-se lá como. Talvez tenhamos uma certa tendência a expor detalhes escatológicos como que para medir a reação do outro e assim ver do que ele é feito; ou quem sabe seja só divertido falar de pum, mas o fato é que vira e mexe esse assunto surge e sempre aparecem histórias as mais variadas.
É interessante como cada casal constrói, com altos e baixos, sua própria moral do pum. E não é uma coisa que se defina a partir da sua concepção individual ou, pelo menos, não deveria ser em um relacionamento saudável. Se decide isso a dois e com o tempo, pois é com ele que vêm as experiências e as necessidades flatulantes. Poucos são os que ousam sair peidando na frente da pessoa amada logo no primeiro encontro, mas é claro que acidentes acontecem.
Até hoje gosto muito de comer feijão e quando jovem não era diferente. No início de um namoro adolescente devo ter comido um pouco a mais de feijão e passei o dia todo com a aquela vontade de soltar puns. Não tinha como sair de perto toda a vez que quisesse peidar, senão era melhor ir embora logo de uma vez, dada a quantidade de flatulências que me vinham. Como não queria ir embora, o jeito foi segurar e ir algumas vezes no banheiro para aliviar. No final de uma tarde heroica eis que nos abraçamos e nesse abraço minha parceira tomou a decisão súbita de apertar minha barriga. O ronco foi imediato e seguido de uma gargalhada de minutos por parte dela e de uma tentativa frustrada minha de esconder o rosto vermelho de vergonha. Ainda ganhei por semanas o apelido de “Dodói Barriguinha”, uma boneca que soltava pum ao apertar sua barriga.
Tem casal que arromba a porta da intimidade de um jeito que nem reconstruindo a casa toda essa porta volta a fechar. E nesse sentido soltar pum é a menor das questões, ou melhor, nem existem questões, pois tudo é lícito. Em contrapartida, existem casais que constroem verdadeiras fortalezas antipum. Para eles, peidar na frente da outra pessoa é ultrajante e terminantemente proibido.
No meu relacionamento atual, evito peidar na frente dela para poupá-la dos cheiros. Mas tem situações que são invitáveis e temos o entendimento que segurar pum faz mal, de modo que soltamos pum na presença do outro eventualmente. Temos também o código de avisar quando está fedido e também de não arrastar, isto é, forçar para o barulho ficar mais alto, levantar a perna, peidar na direção do outro, peidar enquanto come e talvez outros que de tão internalizados nem consigo me lembrar agora. Em outras relações, no entanto, já tive códigos diferentes.
Já vi casais que não construíram de fato a sua moral da flatulência. O código do pum foi unilateral e, nesse caso, geralmente a decisão parte do peidante que, usualmente, é homem. Este, peida como se tudo estivesse resolvido, enquanto que a outra pessoa sente um asco quieto e submisso. Será que um casal que não se acerta nem com relação a algo tão banal quanto seus gases consegue viver bem com outras questões? Às vezes ouço histórias de casais assim e fico me perguntando se levam uma vida boa.
Voltando aos casais mais liberais no peidar, para alguns deles o pum é verdeira fonte de diversão. Labaredas, pum debaixo do cobertor para a outra pessoa cheirar, pum com o fiofó cheio de talco e toda a sorte de jogos acontecem. Além disso, cria-se uma rivalidade em busca do mais alto, do mais fedido, do mais longo, etc. Ouvi, certa vez, relatos sobre a jocosa imitação do pum alheio. Bem espirituosa deve ser essa prática, dado que cada pessoa traz consigo a sua assinatura sonora flatulenta.
Já nos casais mais conservadores quanto aos puns, o tema vira barreira. Dificilmente é discutido e, quando as intercorrências acontecem, são ignoradas ou viram trauma. Conheço casos de pessoas que desenvolveram problemas gastrointestinais por evitar pum perto da pessoa amada. Mentira, não conheço. Mas a minha crença nisso é tão forte que consigo imaginar a situação e visualizar algum médico recomendando em alguma consulta que não se segure os puns.
Por essas tantas formas de se relacionar com o pum, tenho dúvidas se existiria um ética do pum. Quem nunca ouviu relatos de pessoas que cheiram o pum do outro pra acabar o cheiro mais rápido? Será isso gosto, fetiche, submissão ou indiferença? Ou talvez um pouquinho de tudo? O ponto é que existem muitas formas de lidar com as flatulências e não acho que exista uma maneira irrepreensível, embora acredite na existência de, pelo menos, um princípio.
A única ética do pum conjugal possível, a meu ver, é que se construa em conjunto e com igualdade de forças a moral conjugal do pum. Assim, cada casal, a partir dos seus valores e gostos, define o que pode e o que não pode. Qualquer construção unilateral ou vertical não é de fato uma construção. Trata-se de uma imposição de uma moral particular, o que contraria a ética.
As maiores verticalidades em torno da construção da moral do pum conjugal ocorrem quando as pessoas divergem na forma como lidar e não chegam a resolver esse ponto. Conforme dito anteriormente, os tímidos do pum são geralmente menos participantes da construção da moral, pois para o peidante nato, esse flato, digo, esse fato é um dado normal do dia-a-dia, que não precisa de grandes reflexões ou negociações. Já para quem reprime os puns, o assunto pode ser um tabu, algo a ser evitado e, nesse sentido, pode também buscar se esquivar desse assunto na relação. Mas também há quem use a mesma energia com que se contem para cercear os puns alheios. E ai, novamente, pode-se gerar situações verticais.
Uma outra faceta da moral do pum conjugal é que ela vitima os filhos, que nada participaram de sua construção. Os códigos impostos na ordem da família podem ser diferentes dos ansiados pelos filhos e também distintos daqueles que eles construirão com seus parceiros e parceiras. Como lidar com uma questão de casal que agora não é mais só do casal? Reconstruindo a moral, talvez. Percebo que no tumulto que é a criação de filhos a moral do pum se torne uma microquestão. No âmbito do casal ela é maior por que às vezes até define a compatibilidade do casal.
Quando se trata de seres que estão formando seus valores em todos os aspectos da vida, o pum se apequena, se banaliza, torna algo do cotidiano e não uma questão, como pode ser no relativo ao casal. Mas já observei conflitos sobre a moral do pum, principalmente quando os filhos viram adolescentes e eles mesmo desenvolvem seus códigos próprios. Quando crianças, o excesso de intimidade flatulenta pode ser interpretado como uma invasão e, inversamente, a inibição total do pum pode trazer certa relação negativa com os aspectos biológicos do ser ou uma sensação de falta de contato com os pais.
Os filhos são pessoas autônomas, mas que até certo ponto da vida, dependem em graus variáveis dos pais. E é aí que alguns dos pais acabam se confundindo e impondo mais ou menos restrições do que deveriam, sendo mais ou menos espaçosos do que o aconselhável. Enfim, não tem como ter controle ou consciência de tudo o que acontece e agir corretamente com relação a todos os aspectos, sejam eles macro ou microquestões.
Aliás, um dos dramas da nossa vida atual é esse: as microquestões refletem as estruturas enquanto nem temos tempo de pensar naquilo que consideramos decisivo. Para garantir nosso sustento, gastamos mais energia física e mental no mundo do trabalho do que deveríamos e por isso deixamos de lado as nossas questões. As microquestões, então, nos são imperceptíveis, a não ser em ridicularizações como essa. Peidar é um gesto que, como tal, nos revela se o analisarmos. O pum é banal, mas é na banalidade que está a vida. E a vida é uma disjunção de banalidades que ignoramos. O especial é a exceção que queríamos que fosse a regra. O banal é a vida. O pum, afinal, é tão banal quanto a piada daquele pintinho que não tinha cu, foi peidar e explodiu.