UMA PESSOA DE SORTE
Já faz 25 anos que optei por residir em casa. Essa escolha se calcou na definição de um misto de privacidade com a relação entre custo benefício.
Morei o equivalente há quarenta anos em edifícios simples e em sua maioria sem elevador, o que implicava em condomínios não extorsivos, e claro condizentes com o poder aquisitivo.
Depois da boa venda da casa de Santa Teresa, o montante conseguido permitia escolher um apartamento em ruas aprazíveis como a Praia do Flamengo, a Rui Barbosa e a Oswaldo Cruz. Visitei apartamentos mais tradicionais, evitando as construções mais recentes, que além de mais caros, normalmente tem tanto a metragem quadrada, como cúbica inferiores aos prédios mais antigos.
Tudo ia muito bem, até me deparar com o valor mensal de condomínio, sem levar em conta a possibilidade das cotas extras, fator corriqueiro em edifícios que sofreram intempéries por muito tempo.
Final das contas, a opção foi voltar para o mercado de casas. A sorte me conduziu para uma rua em aclive, fator que preconizo e ainda com dois adicionais que conferem externalidade positiva, sol da manhã em logradouro sem saída.
Quem mora em casa sabe que você acaba exercendo o papel de síndico, com uma vantagem, não precisa da opinião de ninguém, e uma desvantagem, você arca integralmente com tudo que quiser fazer, das melhorias à manutenção.
Quando a pandemia desembarcou no Brasil o assunto principal depois dos casos novos e dos óbitos foi sem dúvida as agruras do confinamento. E não faltaram pessoas solícitas que começaram a programar lives e apresentações que aproveitando a densidade do entorno, faziam recitais para um público ávido de novidade, já que a rotina diária começava a estressar moradores das grandes metrópoles.
Como toda casa que se preze sempre tem alguma manutenção a ser feita, o momento se fez propício. Bom, lá vou eu definir prioridades, sabendo de antemão que a variável prazo vai ser elástica. Nem sempre o que é prioritário pode ser prazeroso e vice-versa. A equação ideal deveria ter um mix de alegria com objetividade. Valeria à pena construir uma lista de tarefas, ou trabalhar as questões como o Jack estripador, por partes?
O ponta pé inicial dos trabalhos, como não poderia deixar de ser, envolveu a satisfação de manusear plantas, desde plantar novas frutíferas no terreno, a expandir sob a forma de mudas e sementes desde orquídeas e bromélias, passando por pés de mangueiras e abacateiros para serem posteriormente plantados em outros lugares. Neste kit terra, acabei construindo duas composteira de três estágios que gerariam adubo tanto sólido, como líquido, para a horta que preparava num dos três patamares do terreno.
Tinha resolvido dar uma melhorada na parte de trás da casa, comecei pintando uma contenção de verde acinzentado, onde crescia uma era. A comprida bancada de madeira que delimitava um pequeno jardim foi lixada, e posteriormente recebeu duas demãos de verniz naval escurecido. Numa parede lateral construí estantes, onde posteriormente criei um jardim vertical de bromélias e orquídeas.
Trouxe uma mesa de madeira branca do depósito para esta área, recuperei sua pintura e instalei um tampo de vidro bisotado sobre uns pontos de silicone que distribuí sobre a mesa para deixar a madeira respirar, o vidro eliminou o espaço entre as ripas de madeira. Uma reciclada luminária de alumínio com regulagem de altura foi incorporada ao ambiente. Para adequá-la ao centro da mesa precisei de uma mão francesa e também puxar uma fiação elétrica. Ao final dos trabalhos passamos a desfrutar de uma mesa ao ar livre, que pode inclusive ser usada à noite. Vasos de plantas grandes foram incorporados ao ambiente. Descobri na internet como limpar essas cadeiras brancas de resina que vão ficando escuras com o passar dos anos.
Todas as peças de ferro da casa estavam desbotadas pelo desgaste natural do tempo. Com tinta azul escura refiz toda a pintura dos portões da casa.
Na varanda da frente, a pintura que originalmente era branca, também foi recuperada na sua plenitude, contrastando com o verde das folhas da buganvília e o vermelho de suas flores, um espetáculo tricolor para os olhos.
Devo ter gasto mais de dois baldes de massa de correr para recuperar o platô mais baixo da casa, pois da varanda, a água que escorreu durante anos propiciou o crescimento de algumas parasitas, que conseguem sobreviver sem terra, trançando suas raízes para captar umidade e qualquer detrito que o vento para ali carregue.
Como possuo uma máquina daquelas que bota pressão na água, removi fungos dos muros laterais da casa e posteriormente gastei alguns baldes de tinta branca para recuperar a claridade do sol que neles reflete.
Construí uma mesa fabulosa com uma longa prancha de vidro, preparei toda estrutura com restos de madeira que tinha no depósito. Fiz uso de betume para escurecer as madeiras de cores diferentes. O trabalho foi finalizado com duas mãos de verniz naval.
Então, consegui cumprir todos os protocolos de isolamento sem nenhum sofrimento, muito pelo contrário, exercitando essa capacidade de adaptação, mas claro podendo pegar um solzinho, tomar um banho de mangueira e muitas vezes, saindo de casa bem cedinho e dar rápidos mergulhos em Ipanema, antes mesmo de o policiamento chegar à praia.
Finalmente o mais importante, e com uma dose generosa de prazer, perdi a conta do número de livros comprados e lidos no período. Ou seja, pandemia também é cultura!!!!