Crônicas Médicas - Ohana quer dizer família
“Ohana quer dizer família. Família quer dizer nunca abandonar ou esquecer”. Para os amantes do cinema, essa frase do filme Lilo & Stitch é, provavelmente, bastante conhecida, e, para mim, representa basicamente um estilo de vida, o qual tento colocar em prática todos os dias e aprecio muito quando observo em outros.
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Era manhã de um sábado de dezembro, pouco mais de uma semana antes do Natal, e eu me encontrava entediado no estágio da faculdade. Apesar de estar na Área Vermelha de uma UPA, o movimento era quase zero. Pensando na saúde da população, era bom que se mantivesse dessa maneira, mas, do ponto de vista de um acadêmico que necessita de oportunidades de aprendizado, esse marasmo não se mostrava benéfico.
Por volta das oito horas, foram nos informar de que, em breve, um paciente seria levado para nosso setor. Em uma descrição breve do caso, a médica relatou apenas que se tratava de um senhor, na casa dos oitenta anos, com Alzheimer, com alteração respiratória e piora do estado geral nos últimos dias. Um pouco depois, trazido em cadeira de rodas, chegaram o paciente, Seu Sílvio, a filha e o filho.
Com um pouco de esforço e auxílio da equipe de enfermagem, colocaram o homem na maca, praticamente inconsciente e sem estabelecer comunicação, emitindo somente alguns ruídos quando mexiam com ele. Os enfermeiros posicionaram o paciente adequadamente na maca, aferiram a pressão arterial, checaram a glicemia e ligaram os aparelhos de monitorização contínua. Depois de tudo instalado, enquanto o plantonista conversava com a família e a outra médica mexia com a parte burocrática da internação, eu fui até o leito fazer um primeiro exame.
Tentei chamá-lo, mas não houve resposta, mesmo sacudindo seu ombro. Apenas ruídos e resmungos eram vocalizados pelo paciente, sem sequer abrir os olhos, e, vez ou outra, esboçava movimentos nos braços e nas pernas. Observando-o ali de perto, era evidente o esforço que ele fazia para respirar. Levantei, então, sua camiseta, posicionei o estetoscópio sobre seu peito e o auscultei. Primeiramente, tentei escutar seu coração, que pulsava a mais de 120 batimentos por minutos, sem exibir problemas que levantassem sinal de alarme. Em seguida, direcionei o foco para seus pulmões, que se afogavam em secreção, sofrendo para obter oxigênio do ar ambiente, justificando sua saturação abaixo dos 90% quando chegou (nesse momento, com cateter de oxigênio auxiliando, estava saturando 97%). Sons anormais para um pulmão saudável eram ouvidos por todo o tórax do paciente, alertando para uma provável pneumonia. No restante do exame, nada encontrei que chamasse a atenção.
Depois dessa breve avaliação, conversei com a médica, que já havia acabado de arrumar a papelada, informei o que encontrei e retornei com ela para a beira do leito, para que ela também pudesse examiná-lo. Chegamos, enfim, à mesma linha de raciocínio, solicitamos exames para fundamentar esse pensamento e já demos início ao tratamento.
A título de informação, o quadro geral do Seu Sílvio, enquanto tive contato com ele, não mostrou grande alteração, afinal, muito do seu estado é devido ao Alzheimer já avançado e sem possibilidade de reversão. Por outro lado, do ponto de vista infeccioso, os pulmões evoluíram muito bem de um dia para o outro na internação. No entanto, o foco dessa crônica não é a doença nem o paciente em si, mas as cenas que vi se sucederem em torno dele.
Tendo em vista o quadro demencial avançado e levando por base a ideia de cuidados paliativos, foi permitido à família realizar visitas estendidas e mesmo fora do horário. Assim, na noite do sábado, ainda com o paciente praticamente inconsciente, sua filha chegou à área vermelha e se posicionou ao seu lado, acariciando seu rosto, e iniciou uma conversa casual. Ela mesma fazia as perguntas e as respondia, falava sobre comida, sobre o dia e outros assuntos, sempre mantendo uma mão sobre a fronte do homem e a outra tocando suavemente seu braço. Mais adiante na conversa, a filha começou a cantar para o pai, que seguia sem esboçar reações ou demonstrar qualquer sinal de que reconhecia a filha ou que entendia o que estava acontecendo. Ainda assim, a mulher seguia, sorrindo para o pai.
Pouco depois, a filha deu espaço para seu irmão, que entrou na sala e seguiu o mesmo padrão, conversando e acariciando o rosto e a orelha do pai, indo embora após alguns minutos. Do mesmo modo, já no domingo, a neta e o namorado fizeram questão de visitar o avô e repetir o comportamento dos demais familiares. Os filhos também mantinham de maneira regrada o ritual das visitas, em todos os períodos do dia, evidenciando tremendo respeito, carinho e muito amor de todos para com aquele homem, que, enquanto lúcido, deve ter transmitido o mesmo nível de respeito, carinho e amor.
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Para essas pessoas, não sei se ohana também significa família, mas, sem sombra de dúvidas, família quer dizer nunca abandonar ou esquecer. Mais do que isso, significa fazer questão de lembrar e honrar. Mesmo frente às maiores dificuldades e sabendo que aquele homem que outrora existiu já não se faz mais presente ao mundo exterior, dentro dos corações e da memória de quem o conhece, ele segue vivo e transmitindo seu legado.