O HOMEM QUASE INVISÍVEL

 

As cidades brasileiras estão cheias de pessoas invisíveis. São os muitos moradores de ruas que se multiplicam. Eles surgem e desaparecem, sem que muita gente lhes dê atenção. Durante boa parte de minha vida, agi como a maioria, fiz de tudo para evitar essa gente que cheira mal, te aborda para pedir trocados, às vezes estão bêbados e são acompanhados de histórias daqueles dentre eles que são assaltantes e drogados.

 

Há dez anos trabalho perto da Sé, um dos lugares de São Paulo que tem mais deles, que se tornam assunto de conversas entre os colegas. A maioria agia como eu, mas um amigo pensava diferente, ele sempre andava com um trocado no bolso, e o primeiro que pedia, levava. Perguntei sobre a prática e ele disse que não conseguia ver tanta pobreza com indiferença e sabia que nunca poderia resolver o problema, então fazia o que podia e vez por outra ajudava um. Não mudaria o mundo, só que dava ao menos um pão para alguém. Passei a agir igual a ele, e descobri que agir assim fazia eu me sentir melhor. Evito dar dinheiro a crianças, dá a má sensação de estar incentivando que fiquem nessa vida, prefiro ajudar velhos e deficientes, que não consigo crer que tenham alternativa.

 

Recentemente, passou a ter mendigos também no bairro em que moro. No ponto de ônibus perto de casa, um deles fez um abrigo improvisado com caixas de papelão e madeiras. As pessoas como eu passaram a evitar ficar muito perto, pelo cheiro ruim e porque não dava saber quantos estavam ali. Era um só, um velhinho de barba branca, magrinho e apenas um dente visível na boca. Acho que devem ter reclamado e alguém removeu o abrigo.

 

Algum tempo depois, o velhinho pôs seu colchão em frente a uma escola na rua em que moro. Não abordava ninguém, porém, porém ficava bem no caminho para a academia. Um dia, estava com o trocado no bolso e dei a ele, que agradeceu muito. Tornei isso um hábito, sempre levava um trocado para ajudá-lo, vez ou outra sobrava comida em casa dava a ele também.

 

Certa vez perguntei seu nome, ele sorriu e disse, “o senhor sempre me ajuda, muito obrigado” e disse o nome, a falta de dentes fez a voz difícil de entender, é Osni. Toda vez que o encontrava, dizia o nome dele dava bom dia e um trocadinho. Passaram-se mais dias e ele e suas coisas sumiram, pensei que tivesse sido recolhido ou talvez morrido, os invisíveis vêm e vão sem que saibamos o que ocorreu. Estes pensamentos me entristeceram um pouco, pois ao saber seu nome, o invisível tinha se tornado uma pessoa.

 

Tempos depois, passei a ver ele perto da padaria. Ontem, dei a ele um trocado e ele começou a falar que tinha boa notícia, que ia receber um apartamento de herança que ia vender e comprar uma casa, que depois de 20 anos na rua ia ter ter um bom ano, que ele ia me dar algo porque eu sempre o ajudava. Disse que só queria que ele me desse a boa notícia de que tinha tudo dado certo e que tinha onde morar e desejei boa sorte.

 

Fiquei pensando em como alguém que vive nas ruas conseguiria dar conta de receber a herança, possivelmente pagar tributos por isso, despesas de condomínio e vender, vai saber, talvez antes dos anos de rua tenha tido uma vida que o ensinou como fazer.

 

Dizem que Natal é tempo de bondades e que Ano Novo é de mudanças. Torço muito para que a estória se torne história, que deixe de ser mendigo e que se torne apenas uma pessoa, com onde dormir, comer, tomar banho, vizinho de alguém e visível, como todos deveriam ser.

 

FELIZ NATAL E ÓTIMO ANO NOVO!

 

 

 

 

 

 

 

 

PS: Há sonhos que não se realizam. Seu Osni permanece nas ruas, cada vez mais magro e o que fala é difícil de entender. Provavelmente, a história da herança foi um delírio. Penso que para quem vive nessas condições só mesmo um sonho para permitir ir em frente.

 

Paulo Gussoni
Enviado por Paulo Gussoni em 17/12/2023
Reeditado em 16/03/2024
Código do texto: T7956078
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