A ligação
É claro que não é aconselhável, sobretudo pelos manuais de segurança, porém não se deve prescindir completamente de atender ligação de número desconhecido. Ainda mais se for uma ligação de DDD 11, pois é uma ligação vinda de longe: da grande, poderosa, povoada São Paulo, estando o destinatário na pequenina e longínqua Alagoas.
Deve ser ligação importante, sem dúvida. Vindas de São Paulo, 99% das ligações são importantes. Não apenas as ligações, aliás. As coisas e pessoas também ganham literal e sociologicamente peso, aparência e um preço singulares. Os guardanapos, os palitos de fósforos, as presilhas de cabelo, se originários de São Paulo, destacam-se perante semelhantes miudezas de outras localidades descapitalizadas. Pessoas, se naturais de São Paulo, se residentes em São Paulo, nem parecem brasileiras. Parecem paulistas, o que a estatística já comprovou tratar-se de um elogio.
Não à toa, recentemente, um automóvel da polícia parou um passante, quando esse pedestre passava pelo Beco do Roncador, em suposta atitude suspeita. O passante foi parado, revistado e, quando lhe pediram os documentos, foi constatado oficialmente tratar-se de um cidadão paulista. Os policiais tentaram conter a surpresa de encontrar um paulistano caminhando em atitude suspeita no notável Beco do Roncador. Não à toa o suspeito foi liberado e orientado a caminhar em vias de melhor fama.
Para encurtar a conversa, é preciso dizer que agora e há pouco acabo de receber essa ligação, cujo DDD é 11. Parece suspeita. Mas é de São Paulo. Então, concluo, sem surpresa, que não deve ser suspeita.
Atendo.
Do outro lado da linha, uma voz calma e suave me chama de José.
Oficialmente, desconheço a alcunha. Não sou oficialmente José algum. Mas posso ser, por hoje, por esta manhã de sábado em Alagoas, de pássaro longe das janelas, de tédio nas esquinas, de bares fechados.
A voz calma e suave me pergunta se eu, José, sei onde ela deixou as chaves. Dou linha à corda:
- Que chaves?
A voz, outrora calma e suave, acelera um pouco para dizer que está com pressa, precisa de saber onde estão as chaves. Chego à conclusão de que etica e moralmente não posso continuar sendo José: há, do outro lado da linha, uma voz paulista e suave, à procura de umas chaves que desconheço a origem e o paradeiro.
Alego engano, despeço-me rapidamente da voz suave, já nem tão calma, porém. Por alguns instantes, distanciei-me bastante de Deus, mais que o de costume, sem dúvida. Se pelo menos eu fosse paulista, seria certamente menos pecador e provavelmente Deus me veria com outros olhos.