Garçom do asfalto
Garçom do asfalto
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Vrum!! Vrum!!! Vrum!!!! Acelerava a motocicleta, ainda que parada, na esperança de que os donos da casa, que pediram a comida, acudissem, corressem, recebessem a encomenda e registrassem a entrega. Corria contra o tempo, e já previa as broncas que viriam: Está fria! Que demora! Acha que temos todo o tempo do mundo? Que irresponsabilidade! Perderam um cliente!
Já previa a enxurrada de reclamações, que marcariam negativamente seu nome, ainda que experiente nessa profissão com a qual nunca sonhou e para a qual nunca se preparou, até porque a preparação exigida é mínima: uma carteira de motorista, e uma moto qualquer. Ah! Também precisa de capacete. Um porre de trabalho. Era o resultado da perda de um emprego, ou melhor, era mais um emprego informal. Uma roubada, como dizia para os colegas. Melhor do que roubar, falava a mãe distante.
Depois de quase vinte minutos de barulho, de vrums, e de outros vrums, de mais vrums, e de buzinadas na rua escura, surge, quase de cuecas, o ordenador do pedido. Desculpou-se, estava namorando, sabe como é, tem horas que não há como parar. De dentro, ouvia-se uma voz rouca: amor! amor! amor! corre vai! -Já vou, bem! P... Já te falei para não me chamar de bem! Opa! Havia atrito no ar!
Porém, quem correu, de fato, foi o entregador. Cruzava sinais, ultrapassava pela direita, pela esquerda, por todo canto e, se pudesse, por cima, por baixo e pelo meio também. Corria contra o relógio. Dava cambalhotas imaginárias no ar. Via-se como um corredor, como um motociclista, e não como um motoqueiro. Aqueles são chiques e bem-nascidos. Esses últimos, são proletários das duas rodas. Sentia-se ameaçado o tempo todo. Meneava a cabeça a toda ameaça que sentia. Olhava com algum ódio todos os carros que sentia que o ameavam. E parece que o trânsito todo estava contra ele.
Era mais de meia-noite. Estava com fome. Suado. Cansado. O sono lhe tirava a atenção. Uma sensação de desamparo lhe dava a preocupação com a mulher, sozinha, na pequena casa, com uma criança, sem futuro, a mãe distante, como já disse, e o pai também distante. Na verdade, não tinha mais pai. O sentido de obrigação, ou o medo da perda da atividade (porque não era emprego) no entanto, derrubava o pensamento, e ele continuava.
Subia uma rua movimentada. Aguardava na porta do pequeno prédio que descessem para a entrega do pedido. Observava que não havia mais porteiros nos prédios, e talvez entre tantos porteiros que perderam o posto de trabalho havia vários entregadores que, como ele, reclamavam da falta de porteiros. Alguns foram porteiros um dia. Como porteiros fazem falta! Um sistema de botões incompreensíveis (que destoavam com a simplicidade do edifício) era o desafio do momento. Desceu a moça que fez o pedido. Pelo aplicativo intuía que o nome era Constância. Lindo nome. Diferente.
Esperava, pelo nome, uma linda e graciosa mulher com alguma expressão de fome e de pressa. Acertou nas formas. Errou na medição da fome. Com o tempo, aprendeu a compreender as várias expressões de fome que havia. Imaginava vários patamares distintos, que dividia (na simplicidade de sua forma de pensar) em 1. muita fome, 2. puta fome, 3. fome para caramba, 4. pouca fome, 5. pedido para a patroa, tanto faz.
Havia uma identificação que um observador da sociologia pretensamente identitária diria como indicativo da tensão que reina entre as classes sociais, e que a conscientização da classe oprimida resultaria no enfrentamento de uma situação de permanente iniquidade. Bonito. Na vida real, balela, na qual nenhum deles entregadores, e são muitos, muitos, acreditavam.
Circulava uma conversa-mole de que um advogado prometeu que conseguiria carteira assinada para todos. Metade da classe apoiou. Opa! Haveria décimo-terceiro, férias, horas-extras, descanso semanal remunerado, recolhimento de previdência. A outra metade não gostou. Viam-se como pequenos empresários, que escolhiam a hora de trabalhar, para quem trabalhar, como trabalhar. Não queriam dedo de sindicato nenhum no meio do trabalho. Eram independentes. Não tinha esse negócio de motoqueiro unido...
Nas horas de mais indignação e tensão o entregador lembrava que havia entregadores que faziam as entregas de bicicleta, o que era muito pior. Pior mesmo. O bicho então pegava, como diziam entre eles. Havia uma hierarquização implícita na categoria. A turma da bike era a menos privilegiada (embora na atividade não houvesse privilégio algum). Era quem menos ganhava. Quem mais se cansava. Quem mais se expunha. Viviam suados. Eram macérrimos. Desconfiava-se da demora na entrega. Tinha-se a certeza de que tudo se esfacelava. Era a subclasse da subclasse. No muque, isto é, na perna mesmo. Eram os párias da profissão.
O entregador então parou de pensar. Ou, melhor, foi o cronista quem parou de pensar. O entregador não tinha tempo para pensar nessas coisas, e a narrativa não é dele, por isso, leitor, espere. Termina logo. Tomara que termine bem.
Constância desceu, de bermuda apertada, chinelinhos brancos, com os pés quadrinhos lindos saltitando. Não devia ter mais do que vinte anos. Perguntou o nome do entregador. Nunca lhe perguntaram o nome antes. Perguntou sua idade. Nunca perguntaram sua idade antes. Perguntou onde morava. Nunca perguntaram onde morava antes. Havia, no ar, uma imaginária sugestão para que ficasse. Nunca apelaram para que ele ficasse.
Havia ainda entregas para fazer, e mesmo que resolvesse jogar tudo para o ar, havia lembrança que vinha da mulher que o esperava em casa, ao que acrescentava a criança, a essas horas já dormindo. Sorriu. Agradeceu. Saiu correndo. No entanto, e agora o cronista explica, tudo era imaginário, não havia apelo nenhum. O entregador vivia uma fantasia, que idealizava sempre, e que nunca se realizou. Era um sonhador.
Seguiu para um outro prédio, também na vizinhança. Um senhor cheio de perguntas o recebe. Pergunta seu nome. Quer explicar a origem etimológica. Não entendeu nada. Pergunta quanto ganha, questão que não interessava a ninguém. O homem queria fazer contas. Quantas entregas por dia. Quanto ganhava por cada entrega. Se valia a pena. Um monte de perguntas. Enquanto isso, o ponteiro do relógio virando e as outras entregas esperando. Por que o cara não calava a boca?
Fechou a rodada com um prédio cheio de adolescentes que berravam e bebiam e riam em torno de um vazio, que era o vazio da vida deles. Foi atendido por um deles, que disse que desconhecia a pessoa que procurava para a entrega. Depois de alguns minutos compreendeu que errou de lugar, que o prédio era outro, na rua de trás, e que a região não estava devidamente captada pelo aplicativo dos caminhos. Olhou para cima e os olhos de lágrima miraram a lua, que tomou para si essas lágrimas, e que as desfez em forma de nuvens que a cercavam. A lua se compadeceu. Além de cuidar dos namorados, cuidava também dos motoqueiros entregadores. Alargou sua área de influência.
O destinatário recusou-se a receber a comida encomendada, bronqueou que já era muito tarde, que o entregador demorou muito, que perdeu a fome e a paciência, que mais um pouco iria partir para a ignorância e que já havia cancelado o pedido.
Fazer o quê? Era voltar para onde tudo começou.
Era um novo tipo de garçom. Não usava o terninho preto com a camisa branca surrada e gravatinha borboleta que já saiu de moda. Trabalhava do jeito que saía de casa, barba por fazer, num mundo de homens, jovens, sem outra opção (mas era melhor do que roubar, dizia a mãe), com um capacete e com o risco de queda, da morte, da chuva, do frio, da dor, e com a certeza da fome, do cansaço, da humilhação. Não havia gorjetas. E não havia cozinhas acessíveis. E não havia também restos disponíveis.
Era um novo tipo de garçom. O garçom do asfalto.