Janelas da memória
Entendo muito pouco do tempo em seu sentido físico da coisa. Contas, números e representações matemáticas me causam certo desconforto, mas de seu sentido histórico e filosófico entendo muito, e justamente por entender dele que logo cedo, no início da minha graduação em História, eu decidi fugir do passado.
Estudei Roma e tão logo desisti de tudo para estudar grupos armados no caldeirão que era o Rio de Janeiro nos anos 2010. Elza Soares, na véspera de sua morte disse o seguinte: “my name is now”. Eu também decidi ser o now, especialmente porque é muito fácil sustentar esse personagem na flor dos 18 anos. Não existe passado quando se é um jovem adulto, há uma ideia de algo que ocorreu, algo que é ontem, mas que resvala no hoje, uma massa cinzenta que chega a ser palpável e, em alguma medida, alterável.
Havia somente espaço para o agora e o amanhã. De “agora” em “agora”, como que de “ágora” em “ágora”, o amanhã veio; se apresentou na mesma velocidade da luz, me atingindo com um solavanco violento. Um choque forte que deslocou a mim e ao meu eixo. Eu pisquei, juro que somente pisquei, e estava de volta à uma sala do sexto ano, observando todos os percalços de não ser tão criança e nem tão adolescente, só que agora, era eu o professor.
Olhar para o tempo me fez entender que ele passou para mim, não no sentido de ter me deixado para trás, mas de ter seguido o seu próprio curso e me guiado junto. E nessa, caí na frase de um querido professor que tive na faculdade: “fazer previsão pra trás é mole, Pedro”. Um dia, me dei conta que o tempo me fez abrir as janelas da memória. Foi no divã do meu analista, foi assim mesmo que me expressei “as janelas da memória estão abertas”.
Não ao acaso, este é o nome de um álbum gospel que foi lançado na época de minha infância, na capa, há uma mulher sentada em uma cadeira, com roupas elegantes e um belo chapéu, ela aparenta estar em um jardim, um local arborizado, e em sua direção vem um feixe de luz, claramente é o sol, mas eu vejo como se fosse o brilho do sol através de uma janela. Uma janela de luz solar que se abriu especialmente em direção a ela.
As janelas da memória se abriram ali, e se abriram não para a mulher, mas para o menino que ouvia aquele álbum. As janelas são para a criança que havia em mim, e que em alguma medida, creio ainda existir. Ainda estou entrando em contato com ela, preciso de mais divãs para conversarmos melhor, mas as janelas se escancararam mesmo quando encontrei um vídeo no youtube com as antigas vinhetas da mesma rádio que minha avó ouvia quando eu passava os finais de semana na sua casa.
Fui teletransportado para o passado. Um passado que foi BOM. Deitado na cama que dividia com minha avó, olhando para a janela do quarto, vendo o dia clarear e ouvindo exatamente aquela estação de rádio. Dizem que a gente lembra do passado melhor do que ele realmente foi. Pode ser esse o caso; mas diante das durezas do cotidiano, o passado precisa ser tão fidedigno em relação aos eventos transcorridos?
Não possuo a menor pretensão de voltar no tempo, mas as janelas da memória estão abertas, quero olhar pra elas e me recordar que o passado foi bom, e que o futuro também será. Não preciso achar que foi perfeito, só preciso me lembrar que foi bom.
Quando eu tinha meus 10 ou 11 anos, costumava brincar de carrinho no vão das colunas sob mármore que existem na casa da minha avó. Certa vez, ela colocou seu rosto pela janelinha da sala que dava para a varanda, sorriu e me disse as palavras mágicas: “Um dia você vai lembrar que brincava aqui e vai sentir até saudade”.
As janelas da memória estão abertas. Ainda não deu saudade, mas ainda me lembro. Eu entendo quando Gal canta que viu o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino. Eu realmente entendo.