O CAMPO NA CIDADE
Corria o ano de 1996, morávamos então em um compacto apartamento em Santa Teresa e procurávamos a alguns meses casa para comprar no bairro, nossa busca se restringia à vertente leste da colina, pois assim desfrutaríamos das amenidades de quem mora no alto, com sol da manhã e uma brisa refrescante, que sopra do mar no iniciozinho da tarde.
Nessa época a internet ainda engatinhava, e correr atrás de um imóvel era tarefa árdua, pois jornais ainda faturavam alto com anúncio de imóveis, principalmente nos dias tradicionais para classificados, 4ª feiras, sábados e domingos, quando um ou mais cadernos se dedicavam exclusivamente à venda, ou aluguel de imóveis, sendo que a venda representava mais de 90% dos anúncios.
A outra modalidade passava por definir uma área física de interesse e percorrer suas ruas, valendo recorrer à informação de porteiros, normalmente os primeiros a terem informações sobre possíveis imóveis a serem disponibilizados no mercado.
E foi me utilizando dessa segunda opção, que encontrei um imóvel com características que sempre me seduziram, muito espaço (dois mil metros quadrados) totalmente arborizado, com boa parte de frutíferas, além de uma privilegiada visão panorâmica da baía da Guanabara, quase um sítio urbano.
Como Soninha tinha viajado nesse final de semana, não tive opção, teria que esperar pelo sinal verde dela para avançar nessa nova empreitada. Enquanto acontecia a negociação, levei alguns arquitetos amigos para avaliarem essa aventura imobiliária. Os incentivos não aconteceram, muito pelo contrário, inclusive batizando-a de elefante verde, que era a cor predominante no terreno, tive que seguir adiante confiando no meu taco.
Uma muralha, com o equivalente a quatro andares, era o que um transeunte conseguia ver da rua. Na realidade, esse muro se apoiava na encosta, formado por uma pedra que se pressionada, esfarelava. O térreo dispunha do acesso a escadaria que se alongava por 183 degraus para chegar a casa, além de um quarto, uma garagem e outra ainda por concluir.
A escada em espiral que partia do térreo, dava acesso a mais dois cômodos em níveis diferentes. Terminada essa primeira fase da escadaria, chegava-se a um platô com pelo menos 200 metros quadrados. Uma construção precária ocupava pouco mais da metade do espaço. Passados alguns anos esse espaço foi recuperado e ampliado, agora contando com uma cozinha americana, um banheiro e uma área de serviço, para servir de atelier de arte para Soninha.
Em seguida, a escadaria ficava ao ar livre, mais uns três andares, logo no início contava com um precário banheiro, mais alguns degraus acima, outro patamar dispunha de um largo, com um laguinho, mais adiante, em um novo plano, existia um quarto confortável, com porta e janela de madeira e uma varanda coberta.
O último lance de escadas levava finalmente a casa, onde a luz externa penetrava em todo ambiente, pois praticamente não existia parede de alvenaria, duas portas duplas e uma normal, além de três janelas generosas, todas em madeira acolchoadas por quadrados de vidro faziam o limite da construção com a área externa, diante de uma bela praça sombreada por singela Pata de Vaca de flores rosa. Esse espaço pavimentado em granito bruto e cercado por um jardim murado a cerca de 50 cm do chão. Uma mesa de concreto, com o tampo decorado com ladrilhos portugueses compunha a parte mais usada da casa, principalmente quando recebíamos visita.
Entrando na casa, duas salas contíguas em forma de L e piso de lajota, uma portentosa lareira revestida em pedra de cantaria e tijolo refratário no seu interior, dava um tom de casa de serra. Na extremidade direita da sala ficava nossa confortável suíte. No outro lado da casa, era visível o acesso ao banheiro social e um espaçoso quarto.
Da sala se acessava uma área aberta entre a sala, a cozinha e o quarto de fundos, que também se chegava por uma porta lateral. A cozinha se ligava a sala, a dispensa e ao espaço descoberto, onde uma mesa similar à da praça externa, formava um conjunto interessante com banco de assento com ripas de madeira, esse espaço logo passou a ser reservado para nossos cafés da manhã.
Voltando para a área externa, a cerca de 50 metros, no mesmo nível da casa, um cômodo servia de lavanderia. Em um patamar acima, ficava a caixa d’água e construções que pareciam ter sido usadas para um canil e um galinheiro.
Como o imóvel ficou desocupado por uma década, a estrutura elétrica e hidráulica estava comprometida, o que claro, demandaria um investimento considerável. A drenagem também não mais fazia sua função, desentupir ralos e calhas não seria uma tarefa simples.
Com pouco dinheiro e muita ocupação no trabalho, a casa ficava paralisada durante a semana, e como era longa a espera pelos finais de semana. O programa caseiro começava cedo e se prolongava enquanto houvesse luz natural. Ferramentas impensadas como pá, picareta, ancinho e escavadeiras passaram a fazer parte do nosso cotidiano, para limpar e consertar o que fosse possível, nesse prazeroso primeiro contato com a mãe terra.
Não faltaram momentos de arqueologia urbana, pois à medida que removíamos terra e folhas, caminhos de pedra vinham à tona, e não foram poucas as trilhas descobertas no acidentado terreno.
A água foi a primeira a ser restabelecida, pois exigiu apenas a troca dos dutos de chegada e uma revisão da potente bomba d’água do térreo. Já a energia elétrica demandava mais detalhes técnicos, e também um orçamento mais pesado. Optamos por enterrar todo o cabeamento e refazer a distribuição de energia do imóvel. No passado, toda a rede de distribuição de energia chegava por postes de ferro, posteriormente retirados para venda.
Mudamos para a casa em outubro de 1996, a tempo de comemorar lá meu aniversário de 42 anos. Com o passar dos anos além de nossos cachorros, passamos a conviver com diversificada família de aves, pois além de banana, manga, abacate, mamão, limão, começamos a plantar variadas espécies frutíferas o que atraiu até esquilos para esse nosso território sagrado.
Não tem preço o despertar sinfônico de pássaros e o entardecer ao som das cigarras. No céu o espetáculo de gaivotas, em bando, na sua eterna migração de ida na manhã para as ilhas Cagarras e a volta final de tarde para o manguezal de Guapimirim. A panorâmica baía em seu momento mágico entre o final do dia e o início da noite e as difusas luzes de Niterói, serviam como pano de fundo do intermitente movimento de embarcações marítimas e aéreas a se cruzarem neste dinâmico cenário urbano.
Assim transcorriam nossos dias de campo na cidade. Principalmente aos finais de semana, quando dispúnhamos de tempo para literalmente “brincar de casinha”.