Diagnóstico
Clarice Lispector, em seu livro Um sopro de vida, escrito pouco antes de sua morte, revela o medo de se sentir, de se expressar, de ser quem é e ser taxado como doente:
“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? Talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo... há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Deram-me um nome e me alienaram de mim (Clarice Lispector, 1978). ”
A dor de ser quem é que esse trecho revela é tanta que, realmente, não há palavras para traduzi-lo, o medo de se revelar, a si mesmo e ao outro, diferente do que o social lhe impõe e sofrer a condenação eterna ao ostracismo e quem sabe até choques elétricos, conduzia muitos a escolher morrer a sobreviver dessa maneira.
Quantas e quantas vezes vimos notícias de fatalidades inexplicáveis para uma mente sã – sã no sentido de livre dos julgamentos preestabelecidos, notícias essas que nunca retrataram um por cento das que realmente ocorriam. Nossa civilização, para proteção do sistema que criou, se força a abafar qualquer ocorrência que possibilite o ser humano, indivíduo, a racionalizar e se voltar contra ele.
Demorou mais cem anos para se perceber que a resistência nomeada pela Psicanálise, na verdade era um grito surdo - de nosso ser, nossa alma, de: não é isso que quero para mim, um pedido de socorro para se livrar de uma estrutura cunhada para “o seu próprio bem”, criando assim mecanismos de estudos profissionais para sua análise.
Ainda assim, a saúde mental não tinha um papel de importância e as poucas normas legais que versavam sobre o assunto se limitavam ao tratamento de suas patologias, mas a saúde mental não se limita a eventuais patologias, vem justamente da compreensão dessa diferença de ser, da certeza de que cada um tem seu limite de tolerância, vem da vivencia natural das emoções diárias que todos são submetidos, da capacidade de enfrentar as mudanças que a vida traz de forma equilibrada, estando diretamente relacionada às reações à essa estrutura social de forma a harmonizar o ser como parte do meio como indivíduo.
O livre arbítrio como razão de agir, que se justificava - social e religiosamente, para a punição dos desajustes sociais, já não se justifica, não se escolhe se desajustar, não se escolhe não fazer parte do todo, não se escolhe ser diferente.
Aqui não há definição de qual diferença se fala, o fato de ser diferente do socialmente imposto impinge ao indivíduo uma dor dilacerante, a culpa por ser quem é, a vergonha de saber que não importa o que faça, o que conquiste, nunca será como o outro, a decepção sobre algo que nem ele mesmo entende, o medo de não ser aceito.
Esse medo, que brilhantemente Clarice Lispector manifestou, não se refere ao outro do outro lado do mundo, se refere aos próximos, à família, escola, trabalho, igreja, à civilização que pode ser tocada, com as mãos ou com a mente, àqueles que se fazem mais presentes, àqueles que realmente se importam e importam. Medo esse que é o maior responsável pela debilidade da saúde mental que tanto hoje se fala, medo esse que, por vezes, é a maior e única realidade existente.
Medo de ser taxado, diagnosticado como doente e assim não ter mais voz.
O diagnóstico é uma sentença de vida, quando se define o que se é, mesmo que para si não seja de todo verdade, limita-se ao que define aquele diagnóstico, o cérebro passa a justificar ações e reações como sendo parte da doença, se isentando da responsabilidade do fato, ou mesmo perde a razão de existir e lutar pois sabe-se doente.
A sociedade necessita dessa limitação, como uma forma de separar o joio do trigo, mas o espírito não pode ser definido, delimitado, a mente humana é algo que nunca poderá ser totalmente desvendada, é a dádiva humana.
Somos tão complexos que podemos trazer em nós vários diagnósticos, características de inúmeras coisas e seres, adaptados, integrados, tornando-nos únicos em si.
A delimitação de algo não torna a vida mais fácil, pelo contrário, subjuga a mente limitada a ser ou se tornar aquilo para sempre, tirando de si a grandeza de ser quem e tudo que potencialmente poderia ser.
Não importa quão diferente seja, é a diferença que nos torna únicos e brilhantes, não importa quem nos dizem ser, somos nós que definimos nossos limites, não importa o que os outros pensam, importa o que pensamos de nós mesmos.
Não é um diagnóstico que faz de você o que é, mas sim você e toda força que tem de ser e se tornar melhor e alcançar sua plenitude como ser humano que determinará como sua vida será.