A palavra-valise a bordo da palavra-ônibus
Começo, propositadamente, com Gabriel Perissé, compartilhando com o leitor mais uma das muitas pérolas do seu livro Ler, Pensar e Escrever, obra pequenina do ponto de vista físico, mas de enorme dimensão ou, melhor diria, profundidade, quanto ao conteúdo: “Coisa é tudo e não é nada.” Coisar dá na mesma, mas eu coiso, tu coisas, ele coisa, nós coisamos, vós coisais, eles coisam. Eu coisei, tu coisaste, ele coisou, nós coisamos, vós coisastes, eles coisaram. Ah, vá coisar bem longe daqui!
Ainda existe quem pense que não existe o verbo coisar. Está quadrada ou redondamente enganado, claro. Coisar existe, sim. E eu coiso por mera brincadeira ou gozação, mas há quem coise com seriedade, embora, não raramente, até com certo constrangimento. Explico. Existem pessoas, e não são poucas, que, quando não sabem expressar o que desejam, apelam para o verbo coisar. E coisam! Constrangidamente ou não, elas coisam.
Coisa, assim como coisar, é palavra-ônibus, mas existe também palavra-valise, que não é a mesma coisa. Não são sinônimas e têm, por conseguinte, significados bem diferentes. Assuntos da Linguística e da Gramática, embora eu esteja longe de ser linguista, gramático, filólogo ou coisa que o valha. É bom – eu, pelo menos, acho bom – brincar com esses aspectos pitorescos da língua.
Talvez, a esta altura, alguém já esteja por aí ouriçado, achando que estou metendo o pé pelas mãos. Ou eriçado, a mesma coisa. Pois bem, dou um aviso ao afoito de plantão. Eu sei, cara-pálida, que linguista, gramático, filólogo, e por aí afora (ou adentro, tanto faz) não são a mesma coisa, não são sinônimos. Não vem, que não tem! Eu só quero coisar. “Coisa é tudo e não é nada”, ninguém se esqueça.
Não se trata de insultos, evidentemente. É tudo brincadeira. Sem graça, mas é brincadeira. Eu, aliás, até penso que tem graça, sim. O leitor, contudo, é livre para pensar o que quiser. E, claro, se quiser achar em vez de pensar, também pode. Cada um com suas modas e manias, desde que não prejudique a terceiros. Isso, o não prejudicar a terceiros, é fundamental. Cuidado, não se esqueça!
Pois é. Penso que ninguém se lembra, mas eu comecei a crônica “Leitor de nó na garganta e lágrimas fáceis”, que publiquei aqui na coluna em 31 de maio de 2018, dizendo assim:
Legal, quero ver alguém coisar este troço! Vou pôr minhas dúvidas numa palavra-valise e despachá-las, para bem longe, a bordo de uma palavra-ônibus. Quero ver quem as localizará e conduzirá coercitivamente, sem que antes tenham deixado injustificadamente de atender à intimação prévia que, à evidência, não se lhes fez.
Como eu expliquei na época, com isso eu fazia uma abonação literária de palavra-valise e de palavra-ônibus, mas também, com mais ênfase, externava a minha crítica contundente como advogado às malditas conduções coercitivas, que eram a coqueluche do momento. Felizmente, algum tempo depois, o Supremo Tribunal Federal as coibiu, como era de se esperar.
É isso. Eu poderia encerrar de outra forma. Vou, entretanto, rememorar um parágrafo da crônica “Preço e valor”, que escrevi e publiquei em 27 de setembro de 2010, uma das crônicas que compõem o meu livro De pé por causa da palavra:
“Birds of a feather flock together” (“Pássaros da mesma pena voam juntos”), já diz um provérbio em inglês. “A onça não é dialética”,[1] alguém já o disse com muita sabedoria. Eu, contudo, na luta entre a onça e o ser humano, estarei com este, ninguém duvide. É claro. A onça que se dane!
Ah, sim! Deixo, propositadamente, de explicar o que são palavra-ônibus e palavra-valise. Aos muitos que sabem, os meus parabéns! Aos poucos que não sabem, a minha recomendação de que pesquisem para saber. É prazeroso e muito proveitoso fazer isso.
[1] SANTOS, Jair Ferreira dos. Breve, o pós-humano: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2003, p. 46.