Crônica de mim mesmo
"Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim" - Fernando Pessoa.
Se eu me encontrasse na rua por aí diria poucas e boas. É verdade, tenho muita coisa pra dizer que está entalado na garganta.
_ Ei você, espera um pouquinho – digo interrompendo a caminhada do meu outro eu.
_ Falou comigo?
_ Sim, eu mesmo, quer dizer, você mesmo. O que está fazendo?
_ Estou indo comprar o que minha esposa pediu.
_ Minha você quis dizer.
_ Você é e eu e eu sou você.
_ Hã?
_ É isso mesmo? Não me vê como seu próprio reflexo?
_ Eu quase não me vejo no espelho.
_ Por quê? Espera, essa eu sei responder, problema de autoestima.
_ Como você sabe disso?
_ Você é eu e eu sou você. De fato, precisa repetir várias vezes a mesma coisa. Nossa esposa não está errada, é pra se irritar.
_ O que você quer?
_ Dizer algumas coisas.
Eu e eu fomos andando pela calçada. Limpando pratos sujos desde a infância. Ficamos bravos, rimos, choramos, falamos rispidamente, falamos alegremente. Concordamos e discordamos várias vezes.
_ Por que você jogou bola tão mal? – perguntei.
_ Me desculpa, eu tentei...
_ Relaxa, não precisa se desculpar, era sua natureza.
_ E por que você é tão reservado, às vezes, até covarde – ele me perguntou, com certa ousadia.
_ Perdão, gostaria ser diferente.
_ Fica em paz, sei que você gostaria de ser mais ousado.
_ Lembra aquela vez?
_ Qual?
_ Aquela que você...
_ Ah sim, melhor nem falar. Ainda bem que a gente sabe e ninguém mais...
_ Tantas coisas já passamos juntos. Teatro, premiações, frustrações, angústias, desespero. Às vezes, éramos só nós.
_ O que será que as pessoas de fora estão pensando? – perguntou o outro eu.
_ Do que está falando?
_ Um de nós deve estar falando sozinho.
_ Ou eu ou você é fruto da imaginação.
_ Deixa os outros de lado.
_ Por que você é assim? – perguntei para mim mesmo.
_ Assim como?
_ Assim, tão peculiar e ao mesmo tempo um tanto comum.
_ Não sei, sou o produto de outros eus que vieram antes de mim.
_ Eu prefiro ser essa...
_ Nem sempre a gente gosta do que a gente é, por isso a gente vai mudando e deixando de ser um pouco de nós mesmos e tornando-se outro, quem sabe melhor, e se não der certo, muda de novo.
_ Um carro só funciona com as peças certas, caso contrário não funciona ou de forma não adequada, causando mais problemas.
_ Nem me fala de carro...
A conversa continuou acompanhada de um pão de queijo e nada mais. Aqueles dois que são um tiveram uma boa DR ou por que não uma auditoria interna. Foi imparcial? Não sei dizer. Teria sido melhor se a auditoria tivesse feito por alguém fora do processo, como manda o procedimento. Talvez, mas tem pessoas que tem dificuldade de ouvir os de fora.
Eu me despedi de mim. Sabendo que continuaria comigo mesmo. Às vezes é bom ter um pouco de imaginação, ver-se de fora. Saber como tem andado na rua, se não está andando distraído por aí, se não está desleixado ou coisa do tipo. O pior é que depois do que vi precisa melhor muito. Enfim, ele que continue seus afazeres, mas sem esquecer que estou por aqui.
_ Vê se não me confunde com outro. Tanta gente parecida por aí.
_ Pode deixar, igual a mim só você mesmo. – respondi.
04/12/2023