A gata da vizinha
Tenho-a diante de meus olhos. E é recíproco. Parece surpresa. Talvez com certa razão. Deve está se perguntado por que os humanos necessitam de escovar os dentes. Provavelmente desconhece a existência do fenômeno cárie. A surpresa também é recíproca: não compreendo por que os gatos não escovam os dentes, ao mesmo tempo em que os invejo os dentes sempre limpinhos, asseados, saudáveis, prontos para pronto uso.
Como conseguem preservá-los tão íntegros sem os mecanismos e beneplácitos da Ciência? Sem visita a um dentista, ortodontista, odontohebiatra? É incrível.
Também é inacreditável particularmente o fato de eu nunca ter visto um gato banguela. O banguelismo atinge as diversas categorias animalescas, inclusive os ditos humanos, mas os felinos parecem imunes ao banguelismo. Que coisa, não?, como diria o Quico, e eu replico.
Como são gatos os gatos! As gatas, idem! Graciosos nos movimentos. Ágeis, geralmente leves, lépidos. Bocejadores quase sempre. Mas nunca os quis para fins de convivência. Apesar de serem tão silenciosos, evasivos ao mesmo tempo em que empáticos, zelosos com o bem-estar alheio, criativos, ousados. Mas péssimos caçadores de ratos.
São muito humanistas para matar. Preferem brincar. Vó criava uma gata gorda cujo principal amigo era inacreditavelmente um rato magro. Cresci vendo as brincadeiras dos dois, no quintal de vó. Cresci vendo a gata gorda emagrecer, ao tempo em que o rato magro engordava. Não sei se na mesma medida. O fato é que chegou um tempo em que a gata já não era tão gorda, mas o rato, ah o rato sim, totalmente. Depois descobri o motivo: o danadinho andava furtando a comida e o leite destinados por vó à gata outrora gorda.
Flagrei a cena, em uma manhã de domingo e à boca do meio dia, e aumentou minha aversão a ratos. São uns sacanas! Carnívoros, desonestos, gananciosos. Quase uma cópia de nós, humanos. Primitivistas, adoradores de amor individual, tão pouco coletivistas, humanistas, criativistas. Argutos para o mal.
Penso em muitas coisas que os gatos pensam de nós. Penso, não mais diante dos olhos radiantes e grandes da felina da vizinha, ao tempo em que escovo os dentes, mas enquanto vejo um filme de Van Damme e manuseio três controles remotos e me encho de Doritos e tomo o resto da Coca-Cola que sobrou do almoço, não só porque a imortalidade é uma fantasia assustadora. Também por um pouco de gula, que é um pecado muito saboroso, o qual não devemos morrer sem antes prová-lo.
Vejo o filme desinteressante, ao tempo em que trabalho no automático, a pensar na gata da vizinha. Se ela me visse agora, com este pacote de Doritos, tomando gulosamente esta Coca-Cola usada, o que pensaria de mim? Provavelmente me perguntaria sobre o método que os humanos utilizam para obter comida. E a pergunta não me deixaria surpreso, tendo em vista que uma das necessidades básicas do bicho homem é comer.
A outra é amar. Mas essa sempre esteve em desuso.