GENTE MUITO ESPECIAL

Interessante esse processo de pensar em algum objeto, seja ele qual for, e em seguida começar a digitar o que vem descendo do pensamento.

As minhas manhãs e o iniciozinho da tarde das quartas-feiras são dedicadas a transportar minha cunhada e sua filha adotiva para uma sequência de especialidades de saúde que visam minimizar o difícil quadro da Lara, uma menina com pouco mais de três anos que tem um desenvolvimento similar ao de um bebê com poucos meses de vida.

Nosso tradicional atendimento pela Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação – ABBR vem me mostrando uma realidade diferente de tudo que conhecia antes. Muitas crianças, às vezes bebês que vem ao mundo com problemas sérios, mas que encontram famílias que conseguem segurar o tranco.

Entre os acompanhantes dessas crianças, é majoritária a presença feminina, posso ser considerado avis rara neste ambiente infantil.

Conta a lenda, e conheço alguns casos de pessoas próximas que confirmam essa narrativa: crianças especiais exigem do casal uma quebra de paradigma em relação à vida anterior. Como dificilmente isso ocorre, as mães acabam arcando com toda responsabilidade de acompanhar e suprir tudo que uma criança especial demanda.

Na sala de espera dos consultórios, à espera da volta das terapias mães conversam, se atualizam e trocam informações e desses encontros por tempo limitado, que muitas portas podem se abrir, pois invariavelmente alguma vitória, ou mesmo derrota de alguma ação incorpora um caldo de conhecimento imprescindível na busca de direitos, a princípio negados tanto pelo iniciativa privada, como pelo próprio governo, que deveria proteger seus cidadãos, que tiveram sua vida profissional interrompida da noite, para o dia.

Na vitória por algum pleito, abrem-se as portas para que outros reivindiquem tratamento isonômico, o que acaba por gerar um sentimento de solidariedade, pois neste caso, todas sabem que estão literalmente no mesmo barco.

Essa solidariedade se concretiza com a constante doação entre as mães de equipamentos custosos como cadeiras de rodas especiais, que até dispõem de regulagens, mas chega um momento da necessária substituição do equipamento. E esse processo vale também para próteses especiais, coletes e uma infinidade de possibilidades, que inclui inclusive peças do vestuário.

Neste contexto, o Sistema Único de Saúde consegue fornecer alguns equipamentos, a ele se soma a produção da ABBR, que dispõe de oficina bem equipada, produzindo uma infinidade de equipamentos, mas que infelizmente não consegue suprir a demanda.

Nesse ponto surge um componente para lá de especial, o voluntário habilidoso, em sua maioria composto por pessoas idosas, provavelmente aposentadas, que se dispõe a produzir uma quantidade mensal de equipamentos, diga-se de passagem, sem nenhum apoio financeiro do estado, peças que a custo de mercado inviabilizaria seu uso para o público mais carente.

Foi assim que tive o prazer de conhecer dois voluntários de um universo de colaboradores que desconheço.

O primeiro produz roupa de neoprene para surfistas e mergulhadores, e com as sobras confecciona coletes que melhora a postura de crianças com problema na coluna.

O segundo, um marceneiro aposentado que produz o parapodium, uma espécie de mecanismo para manter em pé crianças que não conseguem se sustentar, para isso se utiliza de vários dispositivos que permitem esse quase milagre.

Essa vivência permite vislumbrar, que ainda existe espaço para sonhar, mesmo quando muitas portas começaram a se fechar na sua frente.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 01/12/2023
Código do texto: T7944485
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