CUMPLICIDADE (*)

Márcia sempre demonstrou independência em seus pensamentos e atitudes. Mulher forte de temperamento, não deixava sem resposta qualquer insinuação que pudesse deixar em dúvida o seu comportamento e sua individualidade. Recebera ensinamentos ortodoxos de sua família desde a tenra infância. Já na pré–escola sobressaia entre suas coleguinhas nas brincadeiras pedagógicas das “tias”. No ensino fundamental exercera liderança sobre as turmas do colégio e no ensino médio sempre tivera uma visão de futuro que causava certa inveja a todos. A adolescência fora marcada pela altivez de suas atitudes no cotidiano, liderança e firmeza ao conduzir reivindicações à direção da escola e a seus pais.

Por razões financeiras, Márcia não pode continuar os estudos universitários, mas adquiriu experiência e conhecimentos no dia-a-dia. Era uma autodidata. Aprendia tudo. Lia diariamente os jornais. Freqüentava bibliotecas e pela sua dedicação cultural sempre era presenteada com livros. Seus autores prediletos eram o português Fernando Pessoa, o realista Eça de Queiroz, os brasileiros Carlos Drumond de Andrade e Érico Veríssimo. Brincava com seus amigos dizendo em seu “caminho não havia uma pedra”, como no de Drumond, mas “tudo valia a pena se a alma não fosse pequena” como Pessoa.

O tempo passava, não para Márcia que continuava demonstrando uma inteligência acima da média. Como toda mulher, ela também se casara. Escolhera como companheiro alguém que pudesse compartilhar com seus anseios e ao mesmo tempo proporcionar condições para concretizar seus sonhos e devaneios.

Crises matrimoniais não abalaram o seu ânimo, pelo contrário, crescera com elas. Aprendera a superar as incertezas e a conduzir com altivez os percalços que a vida apresentava.

Também para ela, a estrada da vida não foi só construída de rosas. Os espinhos tiveram o seu lugar de destaque. Mãe de duas filhas, os afazeres do lar e o cansaço natural imposto pelos anos da labuta diária deixaram marcas em seu corpo. O embelezamento de seu rosto, produzido artificialmente nas casas especializadas, já não conseguia esconder o passar do tempo. Entretanto, tudo isto não era motivo para deixar de acreditar na vida.

A fortaleza interior de Márcia há muito importunavam invejosos, principalmente alguns familiares, que não sabiam compreender o porquê de tanta força. Invejavam-na pela altivez. Invejavam-na pela franqueza ao falar. Invejam-na pelos bens materiais. Invejava-na por tudo quanto não podia ser ou ter. A destruição da fortaleza deveria ser o plano diabólico. Estratégias montadas como pilhérias e chacotas deram um pouco de felicidade a choldra. A maledicência forjada, entretanto, não conseguira jogar às feras a dignidade conseguida em mais de trinta anos. As aves de rapina tentaram avançar, supondo a carne podre, mas foram contidas pela espada da razão.

A vitória mais uma vez não foi só da verdade, mas, sobretudo da cumplicidade que o companheirismo sempre exigiu. Não poderia haver falha.

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(*) O autor é professor de Literatura, Língua Portuguesa e Produção de Textos.

E-mail: edsong@uai.com.br