CRÔNICA PARA UM RETRATO INACABADO
Anoiteço como quem amanhece ao contrário. Em meu inverso, habito tão próximo e perto de mim que mal me reconheço por debaixo dos entulhos de lembranças acumuladas umas sobre as outras ao longo do meus dias, apenas para em enganar de afastamentos e distâncias. Contudo, nada é longe dentro de mim. Entre o agora e o antes são poucos meus milímetros, a tal ponto que chego até a acreditar que, acaso pudesse estender os braços, alcançar-me-ia logo que me mexesse. Por isso necessito olhar para a frente, pois atrás carrego antigos olhares que me olham, às vezes com tristonhos desencantos, em outras com raivosos desapontamentos.
Aqui estou no sumir da tarde preenchendo o vazio no observar do quarto. Tudo parece intocável e impregnado de mesmice. Os livros continuam nas estantes, o abajur na mesinha da cabeceira junto à cama colada ao canto da parede, sobre ela o crucifixo esculpido em metal escuro, a escrivaninha em que sentado estou, as coisas e este porta-retrato. Não estivesse eu aqui, tudo estaria como antes estava no aguardo dos meus retornos. O quarto não me pertence, embora sejam meus seus conteúdos. Sou quem dele faço parte quando repouso em meus estilhaços de despedaçados sonhos e história. Há algo de insuportável nas constâncias, principalmente quando elas revelam impermanências.
Há um retrato no porta-retrato. Um homem e uma mulher, meus pais, que seguram e ladeiam a pequena criança que já fui. Entre eles me aparento infantilmente feliz, olhando sorridente o longe e o adiante que me esperam depois da lente daquela remota câmara fotográfica. O retrato de nós três me acompanha desde quando ainda éramos três. É como se no retrato eu me presenciasse, a partir de então, todas minhas transitórias mudanças. Olho-me com o os olhos de agora, e me vejo, assim como o quadro ao fundo da parede atrás do sofá a compor a foto, feito mais um objeto presente ao mundo dos meus pais. Estranho este meu destino que faz com que veja o mundo em que antes era objeto, objeto do meu mundo de hoje.
Há um relógio no canto da parede que é também o canto esquerdo da foto. Ele marca um tempo preciso e único em sua singularidade extinta. Um tempo morto e rígido como tudo que ali compõe o retrato. Nove e quinze. Nunca mais o mesmo nove e quinze. Os números nada seriam sem a linearidade horizontal dos ponteiros a registrar o vínculo e a distância entre eles. Hoje sei quanto tantos são os nove e quinze que nos separam.
Cresci e enterrei meus pais. Não há mais o sofá nem o quadro. Porém, aquele horário sempre permanecerá como que marcando o início dos meus adeuses. Despedi-me, assim, do futuro, enterrando meu passado nos exatos nove e quinze daquele retrato.
Anoiteço como quem amanhece ao contrário. Quando minha noite encontrar o dia, e minha meninice não me tiver mais qualquer serventia, serei eu a me suceder neste velho porta-retrato. E aí, então, de que adianta me perguntar para onde irão meus perdidos, após me perder de todos? Afinal, há perguntas que não foram feitas para encontrar respostas. Melhor se distrair com o que habita fora. Para isso servem as televisões instaladas nos quartos.
Com a urgência dos apressados, procuro de imediato o controle remoto...