Teto não familiar
Estou numa cabine. Cores e nomes se projetam numa tela. O teto não é nada familiar. Sou/estou num mecha gigante. Lá fora tudo é ruina e destroço. Um anjo desce dos céus, vejo seu rosto nele e sinto o golpe. Minha faca progressiva não existe mais. Tudo se parte.
Hoje tudo começou já se rachando. Quebrei o espelho do banheiro. Quebrei, catei vacilante, temeroso, molhado. Tem um quê de fascínio no vidro. Ele é, numa mesma existência, lâmina e imagem, bastando uma coisinha pra separar um do outro.
Ouvir dizer que quebrar espelho dá sete anos de azar. Será que é isso mesmo?
Pensar está especialmente difícil, a noite foi semi-dormida e essa crônica vai se escrevendo do jeito anterior (Papel e caneta)
Meu celular foi pro conserto, então antes de sair de casa, depois de já ter catado o vidro quebrado, destaco um monte de folhas do meu caderno quase-nunca-usado. Dobro, coloco no bolso. Estou ansioso hoje. Por nada.
Acho engraçado, escrever assim impõe uma urgência do pensamento, uma não traição do tempo. Só sei do que posso lembrar, só sei do que vejo, só conheço o que já foi.
Falando em lembrança, ouvi uma frase engraçada ontem. Era uma solenidade, plateia cheia, sorrisos protocolares e frio. Na transição entre uma fala e outra, a cerimonialista interrompe o silêncio e anuncia:
"Procura-se celular encontrado"
Eu sou faminto por esses desvios, essas dobras no tempo. Ninguém mais parece ter ligado, mas a estranheza ficou ali me sussurrando em várias partes. A poesia da vida aparecendo, bem ali, na polidez.
Dor de cabeça. Escrever enquanto balança o ônibus não foi boa ideia. O sol me vence e vai fatiando os obstáculos, cruzando, iluminando, aquecendo. Minha mente é o espelho que quebrei horas atrás. O sol me atinge seco, contínuo, fazendo esturricar o oxigênio dos pulmões. Escrever é a única garantia de que eu ainda existo.
Será que é assim também pros dentistas? Se viram da cárie alheia, mandam embora a placa, embranquecem os dentes, reconstroem a coisa toda, tem quase uma reação orgástica no soar da broca, le Petit mort, será que o sorriso é pra eles, o que as palavras são pra quem escreve? O sorriso é a frase do corpo. Eles saem e são felizes quando encontram na rua um em que podem apontar e dizer
"Eu que refiz. Esse sorriso é meu"
Estremeço. Repito pra mim mesmo, "procura-se sorriso encontrado" , "procura-se sorriso encontrado" o mundo pareceu se acinzentar, perder a definição. Volto pra casa e no caminho penso que posso morrer ou vomitar a qualquer momento. Chego e abro o portão num mecanicismo sem fim.
Estou debaixo da água, o sabão me rasgou um pouco os olhos, mas logo o ardor some. Sinto como me desprezurizando. Lembro de uma frase da aula de hoje "não abrace o mundo com as pernas."
As minhas mal tem funcionado
"Procura-se pernas encontradas".
A fome me machuca um pouco. Me seco, troco e vou atrás de algo. O tempo se comprime e alarga, sem gosto. Ligo um anime na Netflix, mas logo parece desinteressante. Sobre uns anjos, mechas e umas cenas bem misóginas. Lembro do meu irmão, ele sempre diz que eu sou chato, não consigo assistir nada só por assistir, sem pensar. Se estivesse do meu lado me diria pra desligar o senso critico.
A tela da tevê vai me estreitando, ondulando, engolindo. Adormeço.
Estou numa cabine. Cores e nomes se projetam numa tela. O teto não é nada familiar. Sou/estou num mecha gigante. Lá fora tudo é ruina e destroço. Um anjo desce dos céus, vejo seu rosto nele e sinto o golpe, minha faca progressiva não existe mais. Tudo se parte.