Eu e Deus, a noite e o silêncio.
Minha caminhada já dura mais de oito horas, já não sinto mais os meus pés, o ar gelado do mês de junho começou a ferir a minha pele. A noite está sendo minha companheira, eu olho para a Lua e sigo em frente. Soberba, ela clareia o meu caminho. Solitário, eu deixo-me guiar, sob minha condição de minúsculo ser diante do Universo. Quanto mais frio eu sinto, mais minha força de vontade me faz pisar com força no chão batido da trilha rural.
O meu coração está agradecido por estar vivo e cumprindo a promessa feita há anos: visitar a Senhora Aparecida, que me devolveu a vida num acidente horroroso. Meu caminhão e eu, rolamos serra abaixo, numa curva. Eu já enxergava as luzes da cidade de Piquete, onde pretendia encostar e dormir, mas o sono foi traiçoeiro. O barulho da queda e do caminhão arrastando árvores foi substituído pelo silêncio e o ruído de pequenos insetos. Vez ou outra, eu escutava o som do motor de um automóvel que passava rapidamente, acima de nós. Entre as ferragens, eu enxergava a Lua crescente no céu. E foi nela que eu concentrei a minha fé e força, pedindo a proteção da Mãe querida, até ser localizado no dia seguinte.
Como romeiro, faço o percurso sozinho, acompanhado apenas das duas grandezas que estiveram comigo na última viagem: a Lua e Nossa Senhora Aparecida. Hoje, a caminhada é de agradecimento. Em casa, esposa e filhos torcem para que eu vença mais uma vez o trajeto, já conhecido, pelos nove anos percorridos. Ainda era dia quando deixei a rodovia 459 e enveredei- me na mata da Serra da Mantiqueira. Vou contando as placas de sinalização para os romeiros e desfiando o rosário que trago em mãos.
Devo caminhar mais uma hora, minha parada vai ser bem no final da descida, bem próxima do Vale e do Rio Paraíba. Já passa das vinte e três horas. Evito ficar olhando no relógio; controlo o tempo pelas minhas forças e determinação em vencer. Nesses anos todos, não tive sequer um contratempo nesta peregrinação e não será, nesta última, que terei. Firmando a vista, por entre a folhagem das árvores avisto o clarão de luzes, que deve ser das cidades de Lorena e de Guaratinguetá. Caminho por mais uma hora. Aprendi a ser amigo da noite.
Me protejo da madrugada, embaixo de uma guarita dentro de uma cercania feita para cavalos. Eu e Deus, a noite e o silêncio. Me alimento do último lanche guardado para este momento. Tomo os últimos goles do Bacardi do corote para aquecer o corpo parado, me protejo no cobertor que trago na rodilha da mochila. E assim, começo a me despedir dessa experiência de romeiro. Olho para a Lua, ela olha para mim e confirma que sou um vencedor. Nunca estive sozinho e nem estou neste momento. Há alguém fazendo preces por mim e lá embaixo, quando o dia raiar, a minha Mãe Aparecida estará de braços abertos à minha espera.