Segundo corpo
"Esta ideia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas." - Trecho de "O relógio de hospital", Graciliano Ramos
Estou nu. "Sou substância fria e inerte." Meus pés são nada além de gesso e dureza. Lembro de me fascinar com a rapidez com que as mãos enluvadas e frias me deram um banho, me ergueram e trocaram a roupa de cama.
Tudo quase numa ação autômata, ensaiada
Olho para o gesso: Duas placas cobrem, inteiriçam cada uma das pernas e voltam me uma das dores mais secas e profundas que já senti na vida. A que fez cabê-las ali dentro.
Estou no teto branco hospital, dias atrás vi minha avó, dias mais atrás ainda, alguém me apertou a mão suada, chorou, e disse que já eu ficava bom, que haveria de ser forte e coisa e tal. E aí entrei naquela sala cheia de quinquilharias, máscaras, mãos-bisturis, método, maquinismos.
Mas agora estou deitado, turvo.
Não sei o que achei, não sei se achei que ia morrer na cirurgia, não sei se me apavorou o tubo que desceu até meu rosto, me fez respirar e gritar, respirar e gritar e dormir e anestesiar.
(Talvez o medo de hospitais tenha vindo daí.)
Mesmo criança, não acreditava que fosse andar, não esperava, e também não sei mesmo se queria. A essa altura, não me conhecia de outro jeito que não eu.
Escuto. Quem fala é Elisa Elsie. Fotógrafa, artista, mãe, e acho que posso também chamar de performer. Nos mostra um trabalho pessoal, bonito: Se registrou durante a gravidez, registrou todo o período, toda estranheza do crescer outra vida em si, e aqui algo que pra mim foi quase lâmina: O luto.
Pois, sempre olhamos pra a gestação de um jeito aurático, doce, de elevação, nunca em luto.
Lembro de minha mãe.
Pra que eu nascesse, dois outros morreram. Ou melhor, nunca estiveram. E ela, será que não sentiu a partida, a nunca chegada dos outros dois? Como foi ter que ser forte assim.
Nunca tive coragem de saber.
O luto, Elisa conta, veio do fato de não ser fácil pra ela se despedir de quem era até então. A que carrega uma vida no ventre, e expulsá-la pro mundo. Um inevitável abrir mão de quem ela foi aprendendo a ser (e que de início nem queria )
Escrevo sobre Isso, pois me acordou, me devorou lá bem dentro. Será que minha mãe me quis? E é curioso; mainha diz que, caso vivos, seriam iguais a mim.
E essa pergunta não vem nem por dúvida do amor dela por mim, não, mas no aprender que as coisas nem sempre são assim tão retilíneas, simples.
Nunca soube as circunstâncias que me antecederam.
Adormecido, o olhar masculino, cis, ou ainda, o sem deficiência, passa incólume, reto, míope, a maioria dessas coisas todas, dos saberes e demônios sobre o próprio corpo.
Pra mim, logo ainda criança, ter as pernas refeitas, mudadas, ou até mesmo a possibilidade disso (voltar a andar) me colocou uma fratura no mundo, o desvelamento, um medo de não mais me saber ser.
Uma eterna covardia.
Pra minha sorte (ou azar), a medicina não deu conta da minha existência. E se me pegando da cintura pra baixo, a vida já fez essa perguntação toda, imagine um puerpério, imagine então quando se faz de si um segundo corpo.