UM DOCE DIA

Era um dia ansiosamente esperado, por ser pra lá de especial, e dependia da cooperação de uma variável incontrolável. Refiro-me a até então pouco desenvolvida tecnologia da previsão do tempo, lá daqueles distantes anos 60. A chuva se viesse, melaria essa festa que acontecia ao ar livre

Esse momento caía no finalzinho de setembro, guardando semelhança com o dia das crianças, e por isso mesmo, elas corriam de um lado para o outro, horas a fio, com um baita sorriso na boca e olhos brilhando de tanta felicidade. Para tristeza dessa turma, essa data consagrada a dois médicos/curandeiros, que depois foram elevados a categoria de santo, infelizmente nunca virou feriado oficial.

Nesse dia, a abstenção nas escolas públicas batia recorde, qualquer criança de baixa renda encontrava nessa comemoração, a chance de conviver com fartura de guloseimas, gentilmente distribuídas por adeptos dos santos, para cumprir promessas, permitindo a garotada desfrutar de um doce dia de prazer, que podia até se alongar por mais dias, se a coleta tivesse sido promissora.

Se a sorte me sorrisse, voltaria para casa ao final da jornada com um brinquedo, que comerciantes sorteavam, para delírio desse destrambelhado exército mirim.

O 27 de setembro nem sempre esteve diretamente associado à distribuição dos famosos saquinhos de Cosme e Damião, que comportam grande variedade de doces: do cocô de rato, passando pela Maria mole, cocada, paçoca, quebra-queixo, suspiro, doce de leite, doce de batata doce, pipoca doce, doce de abóbora, bala de coco e pirulitos.

Para o catolicismo, não havia ligação entre esses irmãos e crianças ou mesmo a distribuição de doces. Essa prática veio da associação que escravos fizeram da dupla Cosme e Damião a orixás da umbanda e do candomblé: os Ibejis, filhos gêmeos de Xangô e Iansã.

Naquela época, escravos não podiam cultuar seus orixás e suas divindades livremente. Precisavam criar associação com santos católicos, para não sofrerem punições. A tradição de ofertar doces se vincula diretamente a dois orixás crianças, que foram associados a Cosme e Damião

Nessa conturbada manhã, saía de casa com a mochila quase vazia, a tarefa a ser cumprida, passava por tortuosas caminhadas, hora exigindo uma corridinha, para não perder aquele desejado saquinho, em outro momento pegar uma senha, que mais tarde serviria para o sorteio de brinquedos.

Quem tinha experiência de anos anteriores, precisava apenas lembrar endereços das pessoas que tradicionalmente cumpriam promessa. Valia também se agregar a algum grupo, pois muitas vezes um adulto dava dicas quentes, de endereços onde moradores distribuiriam os almejados saquinhos.

No bairro do Jardim Botânico, mais especificamente na localidade denominada Horto e nas duas ruas que lhe dão acesso, se constituíam no local com maior densidade de moradores humildes, e coincidentemente, os que mais promessas cumpriam.

Portanto, bastava percorrer essas ruas para ir gradativamente enchendo a mochila, mas claro, sempre provando os quitutes preferidos.

Nesse dia, sequer almoçava, a ansiedade era tanta, e claro, de alguma forma as calorias consumidas ao longo do período, davam conta de suprir as necessidades desse doce dia.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 23/11/2023
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