O clube dos cinco

De vez em quando, fecho os olhos, e volto aos tempos do colegial. Durante todo aquele período, eu tive apenas quatro amigos. Fomos os fundadores do clube de leitura Dom Casmurro, e do Capitão Kirk, um fanzine de Jornada nas Estrelas. Como era bom olhar para o futuro com grandes expectativas.

 

Pedrinho queria ser astronauta. Felipe planejava se tornar marinheiro para conhecer o mundo. Beatriz, cujo irmão caçula nasceu de cesariana, encantou-se com a possibilidade de abrir pessoas e mexer lá dentro delas. Eu e Laura queríamos escrever romances.

 

Laura, filha e neta de professores, dizia-me que era preciso estudar e dominar as técnicas narrativas, antes de entrar para valer nos labirintos da ficção (“Michelangelo estudou anatomia antes de esculpir o Davi”).

 

Eu permaneci fiel à Santa Inspiração.

 

Mil e uma histórias rondavam a minha imaginação, bastaria assentá-las sobre o papel, e pronto: Machado de Assis teria outro companheiro de profissão. Logo descobri o quanto estava enganado. Centenas de personagens continuavam a sussurrar os seus dramas nos meus ouvidos, mas entre o pensamento e a página em branco, havia um poder que me impedia de apertar as teclas da Olivetti.

 

Quando as ideias logravam se transformar em textos, as deficiências transbordavam dos parágrafos. Os cenários eram mal descritos, as tramas apresentavam enormes buracos, os diálogos soavam como promessas de políticos em época de eleição.

 

Entrei em desespero. Um poeta aqui da cidade, ao analisar os meus escritos, disse-me:

 

— Tua linguagem é muito simplória e sem nenhum requinte literário.

 

Seguindo os conselhos dele, passei a ornamentar as minhas frases com arcaísmos, com a sintaxe dos parnasianos, com metáforas sem sentido e mesóclises inapropriadas. Laura alertou-me sobre os perigos do pedantismo, mas eu caí na armadilha: o que era ruim tornou-se incompreensível.

 

Certa vez, ao visitar a sepultura de meu avô, deparei-me com a lápide do poeta. Alcançou cem anos de vida, e não compôs um verso que lhe servisse de epitáfio.

 

Apesar de meu fracasso literário, a vida seguiu em frente: servi no Exército, trabalhei como estivador, escrevi novelas que nunca foram publicadas, hoje escrevo crônicas.

 

E os meus amigos? Foram bem sucedidos nos seus planos?

 

Pedrinho, numa reviravolta de fazer inveja aos roteiristas de Hollywood, tornou-se soldador subaquático. No seu traje de astronauta ele explora as profundezas do oceano. Poucas pessoas já estiveram tão longe das estrelas. Tenha paciência, velho amigo: se formos abençoados com a longevidade, poderemos visitar seus bisnetos em Marte, e na volta, vamos tirar fotografias da Terra, lá do mirante lunar.

 

Felipe seguiu à risca o seu plano para conhecer o mundo. Entrou na marinha mercante como moço de convés, e hoje é capitão de um cargueiro holandês. Na sua última visita, tomamos vinho colonial, jogamos dominó e fomos pescar traíras.

 

Laura emigrou para os Estados Unidos. Tem oito ou nove romances publicados. Também traduziu o Dom Casmurro para a língua inglesa.

 

Beatriz mudou-se com a família no último trimestre do colegial. Nos reencontramos há seis meses, quando precisei operar o braço. Desconfiado dos serviços públicos, decidi fazer a cirurgia numa clínica particular. Raspei as economias e parti para a capital do Estado. Durante os procedimentos burocráticos da internação, uma voz desconhecida me chamou pelo nome. Era Beatriz: de óculos, jaleco branco e estetoscópio.

 

No início trocamos palavras com todas as reticências de dois estranhos que um dia foram amigos, mas rapidamente a conversa fluiu como nos velhos tempos. Falamos sobre a época do colégio, sobre os caminhos que nossas vidas seguiram (“sou casada com um jornalista”), sobre os outros integrantes do “clube dos cinco”.

 

Lá pelas tantas, veio a pergunta:

 

— Você ainda escreve?

 

Desconversei. Tive vergonha de confessar que escrevo crônicas para meia dúzia de leitores.