A Estrada, A Chuva, Os Cabelos, O Sax

O garoto sonhara aquela noite. Não que haja algo especial em sonhar, mas para ele, lembrar-se dos sonhos era o elemento mágico daquele momento. Dirigia um carro por uma estrada nublada, seu amor ao seu lado, em silêncio. Pequenas gotas caiam no parabrisa enquanto as notas do saxofone saiam do rádio. Não sabia se criara a melodia no sonho ou se seu inconsciente tinha ouvido-a como ruído branco quando desperto.

Não se lembrava de mais de cinco minutos do sono, mas repetia o pequeno trecho até seus neurônios doerem. Ele vira os olhos, o sorriso e os cabelos. Ele ouvira a respiração, as gotas, o sax e o silencio. Ele sentira o volante, o vento, a estrada, o banco e o frio. Ele sonhara, e era com a mais bela imagem que poderia ver.

No escuro, o ar denso de calor, carregando as partículas de nicotina do cinzeiro, sufocava-o como se tentasse tragar asfalto. Sua boca, amarga do repouso, sentia o gosto de alcatrão misturado com morangos silvestres, formando um ocre, porém doce, sabor. Não haviam morangos, só esperança, a açucarada esperança.

Sete pares de olhos o encaravam. Todos seus, de diferentes momentos do tempo, firmes em seus pregos na parede. Cada cópia do seu rosto, apesar de mais ou menos enrugada, era reconhecida pelo jovem como um estranho. Se lembrava perfeitamente de como se sentira em cada um desses retratos mortos, mas nada além disso. Nenhuma presença, nenhum evento, nenhuma vestimenta, nenhum dialogo. Somente a sensação efêmera que cada pequeno momento lhe causara permanecia firme em sua mente, um calendário emocional de sua exata idade.

São cinco da manhã. O sol fraco bate na janela, adiantou seu turno por conta do verão. Projeta pequenos feixes pelos minúsculos furos de ventilação, não o bastante para iluminar o chão bagunçado ou os livros largados abertos, mas o suficiente para doer. Uma dor de lembrar de existir, de vestir o figurino, subir no palco e contracenar com a sociedade. Ele só quer cancelar o espetáculo, ligar pro seu dublê e pedir pra passar as cenas em seu lugar. Só hoje. Mas quando disca os nove digitos, percebe que escrevera o próprio número. Não há dublê. Não há nem diretor para avisar da desistência. Só lhe resta levantar.

Abre a porta num estrondo. O ar frio invade a densidade do cubículo escuro. Contraste. Há vida hoje. Há vida sempre. Segue para o banheiro, passa um café e se prepara. Sai de casa pronto pra guerra. Vive um dia como qualquer outro. Pelo menos é o que todos que o veem percebem, mais um dia em sua vida. Mas o sorriso discreto lhe segura firme no cotidiano. Em seus atos está a rotina de sempre. Mas em sua mente está a estrada, a chuva, os cabelos e o sax.

O garoto estava feliz hoje. Ele sonhara. Amanhã pode ser difícil novamente. Mas hoje o dia esteve menos pesado que os outros.

Afinal, ele sonhara.

Ariel Alves
Enviado por Ariel Alves em 21/11/2023
Código do texto: T7937179
Classificação de conteúdo: seguro