UMA NOITE... "DAS ARÁBIAS" !

UMA NOITE... "DAS ARÁBIAS" !

Foi uma noite agradabilíssima, memorável diria eu... declamar poemas em meio à floresta, na semi-escuridão reinante do princípio de noite nos transporta aos tempos da Grécia antiga ou, além, na dos muezins árabes do alto de suas torres, a conclamar em voz monocórdia os fiéis muçulmanos. A chegada, mesmo tardia, da bela caixa de som de luzes multicores abrilhantou uma noite inesquecível... quem perdeu esta reunião da ALANIN (*1) tem motivos para arrepender-se, até os "espíritos da noite" apreciaram. Três "violeiros" modernos iluminaram o evento com melodias atuais e, quem diria, música clássica, sempre de qualidade, além dos charmosos trinados de Lígia Saavedra, que nasceu para cantar !

Superei incômoda timidez e dei meu recado já no finalzinho, mas ficou muito ainda por contar, o livro "SERTÃO ALEGRE" -- do advogado que abandonou a profissão para "anotar" os duelos verbais e desafios de viola, Leonardo Mota -- é riquíssimo em "causos". Sei de cor uma série de "estorinhas" e também "repentes"; deixo alguns relembrados neste momento, 100 ANOS depois.

O referido livro dedica várias páginas ao cantador negro "Inácio da Catingueira", o mais famoso do "Agreste" -- região árida que perpassa 3 ou 4 Estados -- na época definido como "do Norte" e hoje pertencendo ao Nordeste. O escravo Inácio era liberado por seu dono, todas as noites, para cantar em saraus, em época sem luz nem rádio e essas "sessões de desafios" faziam a festa dos lugarejos, por vezes o único evento social daquele ano. Ao fim do serão "passava-se o chapéu" e a maior parcela da renda do evento era destinada ao cantador vencedor, Inácio quase sempre. Ficou tão famoso que seu dono o liberou das tarefas na fazenda... esse 20 de novembro pode também ser dedicado ao poeta analfabeto, a "Poesia viva" daqueles sertões dos tempos de Virgulino Ferreira. A peleja do escravo educado e humilde contra um branco citadino convencido e abusado correu os sertões e eternizou-se na boca do povo e em livretos de cordel.

Leonardo Mota não a presenciou, porém anotou as "diversas versões" que correram aquelas plagas na voz de outros cantadores. Inácio venceu em todas elas, mostrando por diversas formas o valor da cor negra e do homem preto, o que CONSTRUIU o país por mais de 300 ANOS, antes da vinda de franceses, de holandeses, alemães, italianos, poloneses, japoneses, libaneses, etc. "Não haveria a Lua dos poetas se não fosse a Noite, os urubus limpam a sujeira nas cidades e o papel, branco, não tem valor sem a tinta, negra, para preenchê-lo. Naqueles tempos não havia um só prédio nas cidades que não tivesse a argamassa feita com o sangue, suor e lágrimas do nergro', afirmava Inácio.

Porém, "Sertão Alegre" é feito também de momentos jocosos, divertidos, em tom de piada... quando a menina sai da cacimba com a moringa à cabeça, espanta-se com um cavalo e cai, ainda agarrada à bilha com a preciosa água. Coitada, estava "desprevenida" ! Levanta depressa, arruma sem graça o vestidinho de chita e, pra disfarçar o constrangimento, pergunta faceira :

-- "Vio a ligereza, coroné" ?!

-- "Vi sim, mia fia, só num sabia qui tinha êssi nômi" !

*** *** ***

Com outro "coroné", novo "causo" divertido... o rapazote insistente batia à porta dele todo mês, propondo levar a filha do fazendeiro para os bailes locais. Batem palmas:

-- "É aquele rapazinho de novo... quer sair com a nossa menina, meu coroné" !, diz a aia negra, quase mãe para a garota.

-- "Arre égua, ainda mato esse frangote á chicotadas" !

Vai à porta, abre a janelinha e pergunta sério, voz grossa:

-- "O que foi dessa vez, rapaz ?! Você não cansa nunca" ?

-- "Tem um baile na cidade, seu Coronel... eu queria levar a Mariazinha comigo" !

-- "Disseste bem... QUERIAS ! Vais ficar querendo" !

-- "Mas, coronel, dançar "não tira pedaço" !

-- "O meu receio é que BOTES"... fora daqui, desgraçado" !

(Huumm, pelo visto a mocinha "ficou pra titia !)

*** *** ***

O famoso "Lampião", procurado em 3 Estados, estava nas cercanias de Fortaleza, quando tudo lá era só mato... dava entrevista para o próprio Leonardo Mota e era filmado por equipe estrangeira. Virgulino decidiu procurar um dentista na capital, de tardinha, na hora da sesta, as ruas da cidade vazias. Encontrou um gaiato -- que o reconheceu -- e que o sabia analfabeto. Lhe indicou prédio grande, marrom... o cangaceiro abriu o portão imenso e encontrou nele jovenzinha, de olhos arregalados, tremendo toda, ele com a mão no queixo, cara de dor:

-- "Fala logo, menina, onde está o tal dentista" ?!

Ela "levou horas" para responder, as mãos tremendo:

-- "É mais pr'ali, 3 casas depois desta aqui, um prédio azul" 1

Passadas duas semanas, seu "braço direito" Silvino chega da capital:

-- "Capitão Virgulino, imagine o que 'tão falando ! Que o senhor entrou sozinho no Quartel da Polícia e desafiou as "volantes" todas" !

-- "Mas, que lorota safada... eu só fui no dentista" !

*** *** ***

"LEOTA" anotou cantoria entre dois mestres do verso, um deles jovem e ainda por cima exímio violonista, se exibindo para a platéia, enquanto o idoso "surrava as cordas". Repasso aqui -- no papel branco, com tina preta -- as estrofes finais das mais de 20 da obra original, adiante gravada em disco LP, nos anos 70. Inicia o mais jovem, voz fina, dando show de sustenidos e bemóis a cada 2 versos, o modesto velho "arranhando a viola", só no "blam-blam-blam":

"A Poesia já vem sendo explorada

pelos sábios antigos e curiosos,

por poetas inspirados e famosos,

de Cultura perfeita e adequada.

Não puderam achar a tal morada,

que eu oculto demais o conteúdo.

Não é para um Poeta sem estudo,

sem estilo, sem rima e sem conceito...

igualmente A UMA BESTA do teu jeito,

que não sabe, mas quer saber de tudo" !

O idoso, voz cansada, séculos de experiência, "dá o mate", tossindo com o tamanho do insulto:

"Muito grande na Terra é meu estudo,

todo mundo me chama professor...

sou professor de qualquer um, cantador,

de demônios, de santos e de mudos.

'Inda sendo poeta muito graúdo,

eu não sou da maneira que tu és !

Se vem 4, vem 5, venha 10...

pode vir em tamanha quantidade

cantador dessa tua qualidade:

cai de joelhos, chorando, a meus pés" !

(blam-blam-blam...)

Foi uma noite... "das Arábias" ! Os literatos "ananins" que privilegiaram outros programas (de TV ?!) não imaginam o que perderam... e com direito a água, a refrigerantes e arroz de forno, tudo de graça. É bom não ignorar o próximo sarau !

"NATO" AZEVEDO (em 20/nov. 2023, 5hs)

OBS: (*1) ALANIN - Academia de Letras de Ananindeua (Pará)