A recaída ou sobre o desejo de escrever

Tenho para mim, que o desejo de escrever é causado por um vírus antiquíssimo e cheio de artimanhas. O tal patógeno, ao atacar um desafortunado, prende-se para sempre à sua alma.

 

O auge dessa manifestação virulenta costuma dar-se na juventude, quando a vítima, depois de ler alguns livros, julga-se capaz de escrever as próprias histórias.

 

Na maioria dos casos, o contágio causa apenas estragos passageiros. Talvez o convalescente perca algumas noites de sono com personagens, que virão lhe bater à porta durante a madrugada. Talvez ele tenha febre ao lidar com vírgulas, regências verbais e divisões de parágrafos. Talvez ele tenha calafrios ao constatar que há uma grande diferença entre escrever e escrever bem. Talvez ele tenha vontade de chorar ao descobrir, que entre escrever bem e a verdadeira literatura, existe um abismo que sepulta, a cada geração, milhões de candidatos à glória literária.

 

Contudo, a vida, com suas exigências comezinhas, encarregar-se-á de enfraquecer a influência espiritual do vírus. Num belo dia, o sujeito acordará mais velho, mais pragmático, e aparentemente curado das ambições literárias que o atormentavam na juventude.

 

Ledo engano. O vírus permaneceu vivo… aguardando na surdina. Basta alguém perguntar: “Você ainda escreve?”, e o danado volta à carga.

 

Há muitos sintomas que denunciam a recaída.

 

O indivíduo passa a ver qualquer situação corriqueira como potenciais tramas para as suas histórias. As pessoas do seu dia a dia deixam de ser meras pessoas. O vírus faz o sujeito enxergá-las como personagens de contos e romances. Por exemplo: o casal que vigorosamente faz amor no apartamento ao lado, pode ser atacado por um psicopata a qualquer momento. É só eu querer.

 

O camarada passa a folhear dicionários e gramáticas em busca da palavra exata e da sintaxe perfeita. Ele irá desenhar mapas e elaborar cronologias para situar suas personagens no tempo e no espaço.

 

O sujeito acordará no meio da noite com frequência, porque até os sonhos podem se transformar em best-sellers. Ao sair de casa, ele sempre levará um bloco de anotações, porque a memória é falível: quem nela confia, corre o risco de perder grandes ideias.

 

O sujeito, forçado pelo vírus, revisará os seus escritos antigos. As histórias anêmicas que ele escrevera na mocidade, talvez possam ser revigoradas com a sabedoria da velhice.

 

Haverá vozes perseguindo o sujeito sem lhe dar sossego. São personagens em busca de um autor. Esse é o truque mais ardiloso do vírus, e pode levar o infectado à beira da loucura, caso ele não tome as devidas precauções.

 

Por último, o vírus fará a vítima ter visões promissoras do futuro. O indivíduo sentirá o cheiro do seu livro, como se ele já estivesse impresso. Terá sonhos com noites de autógrafos e com críticas elogiosas. Nos seus delírios, ele verá a sua obra sendo traduzida para outros idiomas, ganhará prêmios literários famosos, e será convidado a palestrar por todo o país, quiçá até mesmo no estrangeiro.

 

Em vista de tantos sintomas, o sujeito percebe que existe somente um remédio: sentar-se diante de uma página em branco, e começar a escrever; porque não há tormento maior, do que ter uma história dentro do peito, esperando para ser contada.