Belinha, a matadora de dragões

Ontem acordei com a firme decisão de reler os romancistas clássicos da Língua Portuguesa, mas por onde começar? Machado? Eça? Graciliano? Ao correr os olhos pelas prateleiras da estante, descobri que Bentinho, Carlos da Maia e Paulo Honório tinham sido despejados da minha biblioteca. Sem arrependimentos! Sherlock Holmes, Capitão Nemo, Aragorn, o conde Drácula… todos foram inestimáveis companheiros de jornada.

Conformado, já estava com o Frankenstein nas mãos, quando vi, de relance, o Dom Quixote espremido entre as dunas de Arrakis e as montanhas de Mordor. Muito obrigado, meu caro Cervantes, não falas português, mas deste um pouco de alento às minhas escolhas literárias.

Fiquei lendo o espanhol noite adentro. Era uma edição belíssima. Encadernação de couro. Tipografia e diagramação elegantes. Tradução e estudos introdutórios do mais renomado pesquisador de Cervantes em Língua Portuguesa. Ilustrada com as gravuras do francês Gustave Doré.

Hoje ao acordar, encontrei Sancho Pança, Dom Quixote e Rocinante espalhados pelo chão da sala. Esqueci o livro em cima do Sofá e Belinha não resistiu à tentação. Quis fulminá-la com xingamentos, mas a espertinha olhou-me com aquela cara de cadela arrependida. Desisti. Seria como atacar moinhos de vento.

Consumido pelo remorso, decidi comprar outro exemplar do livro (numa edição mais barata, para o caso de Belinha atacar novamente). Laura, minha esposa, queria fazer a compra online, mas eu vivo à moda antiga, prefiro as livrarias e sebos do mundo real. Parti para o centro da cidade.

A moça da livraria, sempre sorridente, digitou no sistema de busca:

— Dom Qui-xo-te… Quixote é com x ou ch?

— Com x.

— Sinto muito — não temos esse título.

— Por favor, tente buscar por Cervantes.

— Cer-van-tes… Cervantes é com s ou c?

— Com c.

Nenhum resultado apareceu na tela. A mocinha, vendo que eu sairia sem comprar nada, pegou-me pelos braços, e me levou até a seção dos mais vendidos.

— O senhor prefere ficção ou não ficção?

Diante de mim estavam os mais recentes sucessos do mercado editorial, mas eu tenho receios de arriscar-me por sertões em cujos labirintos nunca estive perdido.

— Gostou de algum?

— Não querida — fica para outro dia.

— Posso fazer uma sugestão?

— Pode…

Ela desapareceu entre as estantes, e logo depois voltou com um volume na mão. Cheia de entusiasmo, entregou-me um exemplar de ‘1001 Maneiras de Enriquecer sua Aposentadoria’. Comprei o livro.

Satisfeita, a garota agradeceu-me, e partiu no encalço de outro aposentado, que também estava prestes a sair de mãos vazias. Quantos velhos tolos já foram ludibriados por aquele sorriso?

Quando cheguei em casa, começou a chover. Uma garoa quase inexistente. Chuva de molha bobo. Belinha aconchegou-se no tapete. Resolvi dar uma chance ao livrinho recém-adquirido. Quem o editou está de parabéns. Tudo nele conspira para que olhos cansados o leiam sem grandes dificuldades. O cheiro de livro novo perfumou o ar. Pulei o prefácio. Queria saber, sem mais delongas, como enriquecer meus dias de ócio. Então, eis que surgiu grafado em negrito o primeiro capítulo: Leia os clássicos da literatura universal.

Nada de novo embaixo do sol.