A Mafalda, o menino, e a sopa

Estava pensando nisso. O quino e a sopa. Nunca fui muito de ler Mafalda. Quer dizer, sempre acabava trombando com uma tirinha e outra nas provas de português, história, artes, e por aí vai, junto das de Calvin e Haroldo, Níquel Náusea, Hagar, mas nunca fui atrás de saber a fundo. Descobri esses dias que o desapreço de Mafalda por sopa, não é só porque ela que nem eu, aderiu ao movimento “Sopa não é janta”. Nem por ser uma criança com seletividade alimentar, não. Para a Mafalda, para Quino, o cartunista, a sopa era a ditadura. E agora parece que a sopa ainda vai ser intragável para os Hermanos, pelos próximos quatro anos, no mínimo.

Curiosamente ou não, no Brasil, a sopa também foi o símbolo do regime. Não o da dieta, com aquelas sopas fitness de legumes, nem a sopa de pedra do Mazzaropi, mas o regime militar. A ditadura.

Em “A mosca” de Raul Seixas, (Não confundir com aquele bizarrão escatológico, filme do cronenberg, "A mosca", nem com o episodio de Breaking Bad.) na música de Raul, a sopa é também o sistema, o poder, e nós somos a mosquinha.

Quando eu era mais novinho, subi no palco e cantei essa pra uma multidão, uma plateia. (Já posso dizer que fui rockstar? ) Pai subiu comigo todo orgulhoso, dei um abraço na banda, e acabei cantando no tributo a Raul, com a Banda Moby Dick. Tá, posso ter errado um pouco a letra, ter repetido o refrão algumas vezes mais que necessário, mas valeu.

Mas voltando a Mafalda…

Tem uma tirinha que é tipo assim: Mafalda chega e vê sua mãe recortando um jornal.

Mafalda: O que você está recortando do jornal, Mamãe?

Mãe: Uma receita

Mafalda: De coisa gostosa?

Mãe: Sopa de peixe!

(Mafalda olha em silêncio pro jornal como quem vê um inimigo e brada fazendo um bocão)

Mafalda: ABAIXO A LIBERDADE DE IMPRENSA!

Clico num vídeo do youtube, quem fala é Paola, a lindíssima, Argentiníssima, elegantíssima, brabíssima, e todos os outros superlativos que você pensar, Paola Carosella. Ela ensina uma “Potage bone femme” , ou no meu francês capenga…

Uma sopa de batatas.

(Tive um professor de francês uma vez, Euclides, um senhorzinho muito simpático. Segundo ele, descobriu que falava francês quando já adolescente/adulto. Isso mesmo, descobriu.)

Bone Femme, Paola explica, é uma expressão que diz sobre muitas outras coisas, sobre uma mãe, uma mulher, mas também quando a receita é feita com muito amor, muito carinho, de um jeito mais caseiro, rústico. Sem necessariamente tanto rigor técnico.

Aprendi com Agnes Varda em “Os catadores e eu” que catar, colher alimentos é uma atividade autóctone da França, assegurada até por lei. Eles catam, inclusive, dentre várias muitas outras coisas, batatas. (Tem uma cena muito fofinha no documentário, em que ela vai numa plantação de batatas e registra com a câmera, uma série de batatas em forma de coração.)

O vídeo é muito querido, a Paola Carosella dedica esse alimento a um amigo que já se foi. Olho a data do vídeo, e é de dois anos atrás. Pandemia. É muito louco o quanto uma coisa pode ter em si mesma tantas outras coisas. Uma sopa. Ir de um extremo ao outro, ser signo de amor, amargor, saudade, lembrança.

Lembro da minha mãe. Cozinhar é o jeito que ela dá vida pra si, para as coisas, pras pessoas. É o seu anima. Assim como escrever, é o meu.

Lembro que tenho sido um filho ruim

Uma pessoa mais ou menos

Um amigo ausente

Até pra mim tenho faltado

Paro de escrever e decido ligar pra ela.

A ligação dura 7:27. Dá tempo de dizer como tem ido, que tava com uma tosse que não passa, que se cuide, que tá calor, que só não me chamava pra lá, pois ia trabalhar.

Dá tempo também de dizer que me ama.