O tempo e as letras
Pessoalmente, eu acredito que de todas as dimensões físicas da materialidade, a mais importante é o tempo. O decurso do tempo da primeira infância até o crepúsculo da vida é o substrato de análise mais intuitivo, mais rico e mais injusto que o homem consegue conscientizar sobre sua própria consciência, um silogismo do próprio autoconhecimento. O tempo é
sobrelevado de maneira tão relevante que, não à toa, as mitologias das primeiras sociedades gregas, as mais antigas formas de fascinação e reverência, conferiam ao deus Cronos, senhor do tempo, protagonismo na transição entre a origem de tudo com Gaia e o estabelecimento do mais moderno panteão do Olimpo. Informação essa interpretada, evidentemente, ao longo do tempo.
O tempo histórico, elemento essencial para a construção do presente, é inalienável para o conhecimento sobre a sociedade e sobre a humanidade em qualquer aspecto. Não existe absolutamente nenhum aspecto humano fora da História. Mesmo no mais termo momento de fim da incivilidade, pretensamente quando o ser humano abandona os hábitos animalescos de caça e coleta e se sedentariza em grupos maiores com uso de artefatos, conscientização do fogo e comedida domesticação de outros animais e plantas, é impensável viver sem o acúmulo de conhecimento gerado por gerações predecessoras. O ser humano sociável convive a todo momento com o produto da ideia e o trabalho de outras pessoas, muitas vezes de tempos muito mais mediatos do que a si mesmo, o que por si só reforça ao homem e a mulher mais um aspecto da importância do tempo, o ser humano vive a concepção do produto de gerações anteriores enquanto concebe a sua participação para o futuro. A sociedade humana é mais do que a aglutinação de pessoas no mesmo país, no mesmo continente e no mesmo planeta, é a aglutinação de pessoas neste tempo histórico contemporâneo, que sucede a modernidade, o medievo e a antiguidade, e precederá tempos que ainda não pertencem aos anais positivados dos escritos. A sociedade humana é temporalmente difusa. A título de exemplo, jamais Monteiro Lobato seria o autor célebre que inspira esse concurso e este que vos escreve se não tivesse ingressado no Grêmio Literário Álvares de Azevedo, que homenageia um escritor romantista que, por sua vez, precisara beber da fonte de escritores romantistas estrangeiros como George Byron para se encontrar como autor. O escritor que dá nome a esta biblioteca que promove o concurso do qual esta crônica faz parte, Nelson Foot, figura importante para a história da cidade de Jundiaí, estudara em uma escola que homenageava uma das eminências pardas mais relevantes da história deste país enquanto Império (José Bonifácio), localizada em uma rua nomenclaturada com o nome do primeiro presidente civil da história da República e responsável pelo alicerce da promiscuidade das então oligarquias (Prudente de Moraes), mas se tornou importante como escritor para a cidade a partir da convivência dentro do Gabinete de Leitura Ruy Barbosa, uma das primeiras bibliotecas da cidade que fazia reverência ao um político e jurista de quilate, de certa forma um importante personagem na política constitucional nacional na primeira metade do século XX. Nada ele representaria se não estivesse imerso em um contexto intelectual, e representa ele uma continuidade deste contexto intelectual que colimará em outras pessoas públicas. Toda essa relevância, todavia, deve-se a cognição. Finalmente é neste ponto que queríamos finalmente chegar: a cognição.
Cognição é, de acordo com a linguagem denotativa devidamente dicionarizada, a ação de percepção ou transmissão do conhecimento, capacidade de aquisição e discernimento. Tendo em vista que o tempo é o substrato de análise, cognição é ferramenta analítica. Não pode haver confusão entre o tempo cronológico puro com aquilo que dele decorre em determinado ínterim. Analisar esse substrato não é olhar matematicamente para os anos de 1808, 1822, 1889, 1930 e
1945 e inferir diferenças nos seus algarismos, mas entender que em 1808 há um primeiro momento de combinação política institucional e político social de existência de um país chamado Brasil, que seria consolidada na independência formal do país a partir do segundo ano ilustrado, que veio a se transformar em uma república a partir de 1889, ano que guarda apenas essa
semelhança com 1930 e 1945, haja vista que as fases republicanas implicitadas na história deste país são completamente diferentes entre si, revelando apenas um violento processo de construção e desconstrução do que esta nação representava e representará. A única semelhança em todos esses períodos foi o potencial excludente que o Brasil vivenciou.
Feita essa comparação entre tempo e cognição, é importante pensar que a cognição também não pode ser resumida a uma mera preleção ou repetição. Muito pelo contrário. Não há nada mais difícil do que aprender e ensinar. Tentamos fazer isso a vida inteira e provavelmente não conseguimos fazer isso com excelência. Cognição será uma etapa final de uma tentativa
bem-sucedida de muita leitura. Muita leitura mesmo. A leitura está para o aprendizado assim como a energia elétrica está para o século XXI. Ela é tão essencial, que não haveria capacidade de percepção da realidade não fossem as palavras escritas transmitidas gerações após gerações. A cognição é uma ferramenta, mas ela é inexequível sem a capacidade de abstração da realidade e transformação de tudo em letras e palavras.
Infelizmente, nosso país convive com tristes estatísticas acerca do inadimplemento ao elementar direito à educação que revelam uma péssima realidade. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios publicados em junho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, quase 10 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever. O número pode parecer pequeno frente ao tamanho colossal da população brasileira, e mesmo sem considerar que as taxas de alfabetismo e de analfabetismo conseguem revelar dados outros que caracterizam um inacesso a estruturas da leitura, como a funcionalidade, a sofisticação da interpretação e o ensejo lógico que ela transmite, o que certamente eleva e muito o número de pessoas vulneráveis dado o parco conhecimento do idioma, é aterrador reconhecer isso. É aterrador reconhecer que milhões de pessoas neste país não tem acesso às letras. É literalmente ter proscrita a principal forma de comunicação. É não conseguir ter ferramenta para a análise intelectual de qualquer coisa, desde a infância até o final da vida. É se fragilizar em relação a um mundo que já tem uma capacidade natural de ser cruel a um ponto tal que é quase como chegar a um nível de ser um cidadão de uma outra categoria, o que evidentemente não permite o país a superação de uma das suas fases
mais tristes da história.
Muitos destes índices de analfabetismo estão relacionados aos preconceitos étnicos, geográficos e etários que o país possui, corolários desde a formação do país ainda como colônia. O Brasil, assim como toda porção latina da América, não foi planejado para ser um país educado e civilizado. A expansão do comércio e do capitalismo europeu tomou de assalto o status quo de um local em que a população autóctone vivia em comunhão com a natureza. Um projeto de país que não teve oportunidade de amadurecer paulatinamente como acontecera massivamente na Europa continental e foi forçosamente miscigenado a partir de um violento processo de aculturamento e emprego de trabalho escravo de africanos e americanos. Como um projeto de país poderia dar certo se o conhecimento foi reservado para as metrópoles e para as colônias
apenas a barbárie? Disso decorre muitos dos problemas do país. Incautos colonizaram o país, desprovidos de quaisquer livros, sejam para eles, seja para o povo.
Essa situação de “analfabetismo forçado” legou ao país a sua condição de majoritário subdesenvolvimento humano. No país, espraiou-se até mesmo o “analfabetismo recreativo”, o não hábito de leitura, como se leitura fosse algo modorrento, algo que Mário Quitanda asseverava quando dizia que “o verdadeiro analfabeto é aquele que pode ler e não lê”. E todos esses
analfabetismos contribuem enormemente para os colapsos do país. Fôssemos nós responsáveis em estabelecer uma escala de época civilizacional para o Brasil, não poderíamos colocá-lo no seu devido tempo histórico. Provavelmente teríamos que reconhecê-lo no século XV ou XVI. O parco acesso do país ao idioma escrito formal toma dele a a principal dimensão da materialidade: o tempo.
A capacidade de leitura, tanto a técnica mais basal de atribuição de significado para letras e palavras, até a mais sofisticada hermenêutica de interpretação, cujo nome homenageia inclusive o deus grego Hermes, que não era um mero mensageiro como erradamente se pensa, porém um mediador importantíssimo para o atingimento de todos os significados, é, portanto, não apenas uma parte integrante fundamental da cidadania, mas a própria corporificação da cidadania. Retirar de um humano a sua capacidade de ler, escrever e interpretar é condená-lo a morte em vida e com vida. É o ápice da crueldade com o mínimo de desfaçatez. É matar de maneira civil. É, mormente, extrair o seu direito de viver não só seu tempo, mas qualquer tempo possível.
Exatamente por isso é importante resguardar todos os direitos a educação constitucionalmente e legalmente previstos para crianças e adolescentes. Para que o país possa efetivamente superar os analfabetismos e ver, pela primeira vez na história, o tempo passar por aqui.
[Texto perdedor do 1º Prêmio Jundiaí de Literatura - Eixo Publicação de Textos - 94º colocação entre 276 textos - Nota total: 7.21 de 10]