Do Limão, Uma Limonada

O vuco-vuco para ir para a escola começa às 05h30, com a correria para servir o café da manhã, tomar banho, pôr o uniforme, arrumar o cabelo, dentre outras coisas. Nos esforçamos para deixar tudo ajeitado na véspera, mas sempre há percalços ou algo que não se pode antecipar. "Anda logo, pai!" é uma ordem corriqueira.

Muitas vezes o mau-humor se instaura, em razão desse estresse matutino. No carro, já em direção à escola , liguei o rádio e caiu na MEC FM. Tocava algum concerto em “sol maior” ou qualquer outra coisa erudita de que não faço ideia. Daí joguei a isca: a música clássica é a mais indicada para trilhas de filme.

Diante do olhar interrogativo, expliquei: É que ela casa bem com as situações mais variadas. Vejam só estamos atrasados e nesse trecho (a música estava com um movimento acelerado das cordas) é possível sentir a pressa de um personagem ou a sua ansiedade. O sorriso de concordância no rosto delas indicava que haviam sido fisgadas.

Prossegui.

Vejam agora, por exemplo, este trecho mais lento da composição. (Estávamos na rua Roberto Silveira, onde pela manhã bem cedo, já há considerável fluxo de pessoas e carros, filas nos pontos de ônibus, barulho, enfim, os elementos normais de uma cidade que acaba de despertar).

Percebam agora que há um contraste, afirmei. Olhem o cenário ao redor. Notem a sincronia dos sinais nesse corredor formado entre edifícios colossais; a velocidade arrastada dos veículos; a sirene desgovernada da ambulância; as pessoas sonolentas atravessando a rua, maquinalmente, num compasso único de pernas; o ronco metálico e feroz dos motores de ônibus e caminhões; a revoada indiferente do bando de pássaros; o bocejo perdido da moça no ponto de ônibus; o tropeço do pai distraído que leva a criança para escola; o sono inabalável do sem-teto; a desembalada carreira do transeunte após o tic-tac do relógio reverberar na sua mente.

Todo esse caos, com a música adequada de fundo, assume uma estranha harmonia, disse para elas regendo a canção com uma batuta imaginária e ares de maestro possuído, sem, é claro, a tradicional cabeleira esvoaçante.

Chegamos.

Boa aula, desejei de forma blasé para a mais velha que há alguns minutos estava com uma aparência sombria e temperamento nebuloso.

Ela sorriu.

Dever cumprido. Não é fácil fazer do limão uma limonada.

Guilherme Lino
Enviado por Guilherme Lino em 16/11/2023
Código do texto: T7933067
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